quarta-feira, 3 de abril de 2013

Retrato da juventude atual: O Desaparecimento dos adultos e a Balada do Nada



O Desaparecimento dos adultos


Giovanni Cucci S.I.
[i]






























Uma sociedade de eternos adolescentes?

Continua-se a estar sempre mais atingido pelo nivelamento das gerações que se vê em rapazes e moças, jovens e adultos unidos por uma mesma dinâmica: no modo de vestir, falar, se comportar, mas, sobretudo, nas relações e na afetividade revelam-se muitas vezes as mesmas dificuldades, até o ponto em que se torna difícil entender quem desses é realmente o adulto. Ao mesmo tempo, preocupa a sempre maior difundida fuga da responsabilidade, que leva a procrastinar indefinidamente as escolhas de vida, iludindo-se de ter sempre intactos, diante de si, todas as possibilidades.

Uma pesquisa da Istat[ii], realizada em 2008 (e, por conseguinte, anterior à grave crise que infelizmente levou ao desemprego milhares de jovens e de adultos), revelava que mais de 70% das pessoas com idade entre 19 e 39 anos vivem ainda com os pais. O motivo é também, mas não somente, econômico, já que nessa faixa há pessoas com trabalho estável e uma renda que permitiria viver de maneira independente.

As mesmas pesquisas mostram, além disso, que na Itália, mas também em outros países da Europa, há um aumento preocupante de jovens/adultos que pararam numa espécie de “limbo”, sem escolhas e sem perspectivas. Essa situação abarca uma faixa etária sempre maior, ao ponto de ser agora classificada como categoria sociológica, “a geração nem-nem”[iii]. Mas, principalmente, tal condição, não é vista como problemática pela maioria das pessoas: “Há 270 mil jovens entre 15 e 19 anos que não estudam e não trabalham (9%): a maior parte porque não encontra trabalho; 50 mil porque fizeram de sua inatividade uma escolha; há ainda 11 mil que não querem saber de trabalhar ou estudar (“não me interessa”, “não preciso”, dizem). A mesma tendência ocorre nos dados relativos aos jovens entre 25 e 35 anos: um milhão e noventa mil não estudam e não trabalham; ou seja, quase um quarto deles (25%). Um milhão e duzentos mil desses gravitam no desemprego (mas entre estes últimos há quem diga que não procura bem porque está “desanimado” ou porque “de qualquer modo, o emprego não existe mesmo”). Setecentos mil são, ao contrário, os “inativos convictos”: não procuram trabalho e não estão dispostos a procurá-lo [...]. Uma pesquisa espanhola recente, assinada pela sociedade Metroscopia, revela que 54% dos jovens da idade dos 18 aos 35 anos declara “não haver nenhum projeto sobre o qual desenvolver o próprio interesse ou os próprios sonhos”[iv].

A essa situação de impasse e confusão acompanha uma igualmente grave crise de autoridade e de normatividade que, como se verá, constituem um dever educativo irrenunciável. Tal dever é rejeitado por muitos motivos: porque esses que deveriam fazer valer a norma, os adultos, não possuem a força, têm medo de parecerem impopulares ou, muitas vezes, porque muitos não acreditam mais em ditas normas, vistas somente como uma fonte de conflito e dificuldade.

Mas o aspecto talvez mais triste dessa carência seja que a norma que o adulto deveria estabelecer, vem a faltar porque, às vezes, os mesmos educadores e pais se encontram perdidos em problemas afetivos, relacionais, até mesmo de dependência. E daí a crise profunda do adulto, com o risco de seu desaparecimento: “Se um adulto é alguém que tenta assumir as consequências de seus atos e de suas palavras [...], não podemos deixar de constatar um forte declínio da sua presença na nossa sociedade [...]. Os adultos parecem estar perdidos no mesmo mar onde se perderam os próprios filhos, sem qualquer distinção de geração”[v].

Uma motivação possível, na origem dessa amálgama indiferenciada, pode ser detectada no prolongamento da meia idade, própria das últimas décadas e agravada devido à crise econômica atual, a qual não encoraja a levar em consideração os custos e os esforços adicionais para comprometer-se numa situação futura incerta. Além disso, a nova cultura tecnológica contribui para confundir os limites entre a realidade e a fantasia, que é a característica típica da criança. Já o havia compreendido com lucidez Johan Huizinga no longínquo 1935: “[O homem moderno] pode viajar de avião, falar com pessoas do outro hemisfério, comprar guloseimas inserindo poucas moedas numa máquina automática [...]. Aperta um botão, e a vida cai aos seus pés. Pode tal vida torná-lo emancipado? Ao contrário. A vida para ele tornou-se um brinquedo. É de se espantar que ele se comporte como uma criança?”[vi].


A dificuldade de crescer na sociedade tecnológica

A cultura dita tecnológica se impõe hoje, não só pela difusão de instrumentos sempre mais sofisticados, principalmente pela possibilidade de planificar a existência de uma maneira impensável às gerações precedentes[vii]. E isso, especialmente, em nível de natalidade. Em tal campo, apareceram termos usados sempre mais frequentemente, até surgir o slogan que resume uma concepção de vida: “procriação responsável”, filhos “queridos e desejados”, ou mesmo “programáveis”.

Parece assim ter-se realizado o sonho, desejado por Freud no fim do século XIX, de poder separar a concepção da pulsão erótica: tal separação não favoreceu, todavia, como esperava o fundador da psicanálise, o “triunfo da humanidade”[viii]. Mais precisamente essa levou a um empobrecimento psicológico e afetivo, nunca antes conhecido, uma verdadeira “revolução antropológica”, para retomar o subtítulo de um livro de Marcel Gauchet.

Desde o seu nascimento, o ser humano tem a ânsia de que, no fundo, poderia não ter sido desejada e que deve, de qualquer modo, “merecer” ter vindo ao mundo, correspondendo às fortes expectativas dos seus pais. Como observa Gauchet: “Disso pode derivar a invencível fé na própria sorte, ou, ao contrário, a sensação de irremediável precariedade da própria existência. Em relação àquele desejo que o subtraiu ao destino comum, manterá muitas vezes uma irredutível aflição [...]. Um filho é cada vez mais desejado quanto menos é filho da natureza; mais é fruto de um artifício, qualquer que este seja, menos é aquilo que deve ser: o filho de seus pais”[ix].

Outro aspecto paradoxal dessa desenvolvida potencialidade planificadora é que a acurada seleção do nascituro corresponde sempre menos àquela atenção afetiva e educativa indispensáveis para educá-lo, tornando-o um adulto responsável. O filho se encontra, ao contrário, sufocado pela atenção dos pais que, depois de o terem programado por tanto tempo, veem nele a possibilidade de realizarem suas expectativas, muitas vezes até de preencherem seus vazios e suas incompetências.

A criança corre o risco, assim, de ser bem cedo tratada como um mini adulto, sobretudo se está sendo criada por um genitor solteiro: nesse caso, forte será a tendência a depositar no filho esperanças e expectativas que na verdade deveriam estar voltadas ao próprio companheiro, dando origem àqueles perversos díades nas quais o filho ou a filha são chamados a tornarem-se respectivamente “vice-marido” ou “vice-esposa” do próprio genitor, impedindo-se de viver a etapa infantil e a própria filiação, duas condições essenciais para a maturidade psíquica, cognitiva e afetiva[x].

A “síndrome do filho único”, vista em outras ocasiões[xi], parece confirmar essa inconsciente agitação, o desconforto de lidar com a polaridade desejo/rejeição dos pais. Ele se torna assim esmagado pelas expectativas dos pais, da mesma forma que um brinquedo é chamado a compensar as carências dos adultos.

Tudo isso contribui à incapacidade de um filho se tornar adulto; incapaz, sobretudo, de saber o que verdadeiramente quer da própria vida. Uma vez crescido, aquele menino ou aquela menina procurarão de fato aquela infância perdida que jamais tiveram, recusando-se a crescer.


A Síndrome de Peter Pan

A rejeição ao crescimento é um fenômeno em expansão, também desde o ponto de vista geracional, a tal ponto de ocupar a vida inteira do homem. Essa situação de “bloqueio interior”, de impossibilidade de se passar à fase adulta da vida, foi recentemente ratificada como categoria psicológica, chamada de Síndrome de Peter Pan através da obra do psicólogo junguiano Dan Kiley. Ele se inspira no célebre romance de James Barrie Peter and Wendy, publicado em 1911, embora tenha conseguido maior fama o título escolhido para a representação teatral, de 1904 (Peter Pan: o menino que nunca quis crescer).

A escolha do personagem, protagonista do romance, já é por si significativa. Peter era também o nome do irmão de James que morreu aos catorze anos num acidente de patinagem; enquanto Pan, na mitologia grega, era filho de Ermes e da filha de Driope, que o rejeitou, abandonando-o ao seu destino[xii]. Como na mitologia e no romance de Barrie, também na Síndrome de Peter Pan à base da condição instável e errante desse personagem é principalmente a ausência de relações afetivas importantes, em particular com os pais, vistos como frios e distantes, ou incapazes de suscitar respeito[xiii].

Desse modo, quem sofre dessa síndrome busca a própria infância perdida, comportando-se como se o tempo tivesse parado, assumindo por toda a vida a instabilidade psíquica e afetiva própria da adolescência, prisioneiro “no abismo entre o homem que não se quer tornar e o garoto que não se pode continuar a ser”[xiv]. E se essa pessoa, no meio tempo, também se casa, acaba por entrar em concorrência com os próprios filhos, imitando-lhes os comportamentos e os modos de pensar. Como confessava uma jovem desconsolada: “meu pai não faz outra coisa a não ser correr atrás das minhas amigas e depois quer se confidenciar comigo”[xv].
  
Por sua vez, os filhos, colocados no mesmo nível dos seus pais, tendem a comportarem-se como adultos: desse modo, nenhum dos dois vive as responsabilidades e peculiaridades da própria etapa de vida; como num jogo perverso, esses vêm trocados, invertendo perigosamente o significado da derrota edípica: “Se olhamos atentamente ao conteúdo da TV, podemos encontrar uma documentação bastante precisa não somente do nascimento da ‘criança adulta’, mas também do adulto ‘feito criança’ [...] Salvo raras exceções, os adultos na televisão não tomam seriamente o próprio trabalho, não educam seus filhos, não participam na vida política, não praticam nenhuma religião, não representam nenhuma tradição, não têm capacidade de pensar o próprio futuro ou de formular seriamente projetos de vida, não são capazes de fazer longos discursos e não são nunca capazes de evitar comportamentos dignos de uma criança de oito anos”[xvi].

Na atual sociedade “líquida” a fase adulta corre o risco assim de reduzir-se a uma expressão de meros dados sem mais responsabilidades específicas que a caracterizam e, sobretudo, a diferenciam das fases precedentes da vida, conferindo-lhe uma identidade: ser adultos era sinônimo de ser maduros, não certamente como as crianças, mas capazes de assumir responsabilidades. Essas características aparecem sempre mais raramente, ao ponto em que “não é excessivo falar de uma liquidação da idade adulta. Estamos assistindo a uma desagregação daquilo que significava maturidade”[xvii].


O desaparecimento do pai
  
A contínua popularidade e atualidade de Peter Pan não falam somente de uma dificuldade de crescimento. Esse personagem é também uma forma de protesto em relação à fuga dos educadores, daqueles que podem fazer bela, ainda que difícil, a missão de tornar-se adulto, deixando-o só: “Se Peter Pan é o símbolo de um fenômeno que tem crescido sempre mais nos últimos cem anos, ou seja, a obstinada vontade de permanecer criança, Peter Pan nos diz ainda algo mais inquietante: perdemos os nossos pais como modelos, os pontos de referência sólidos, fomos abandonados a nós mesmos”[xviii].

É significativo que autores das mais diversas escolas de proveniência individuam particularmente na ausência da figura paterna, acentuada dramaticamente nas últimas décadas, uma das principais razões para o vazio de sentido e de identidade que parece ser comum a jovens e a adultos. Um autor que não pode certamente ser etiquetado de tradicionalismo nostálgico observa a esse propósito: “O vazio estrutural da moderna sociedade ocidental provem da ausência do pai. Em certo sentido o enfraquecimento ou inclusive o desaparecimento de todos os outros papéis de parentesco derivam daquela lacuna que está no vértice da família”[xix]. Nessa falta, se constata, de fato, a incapacidade de uma geração de transmitir valores e tradições capazes de ajudar o futuro adulto a enfrentar as dificuldades da vida tornando, por sua vez, educadores de outros.

O desaparecimento dos vínculos familiares foi infelizmente visto como o sinal profético da vinda de uma nova sociedade; nos anos setenta do século passado era desejada a morte do matrimônio e da família, vista como o símbolo da opressão que penaliza a liberdade do indivíduo, impedindo a auto realização[xx]. Os resultados se revelaram, porém, muito diversos, precursores de problemas bem mais graves, que correm o risco de levar ao desaparecimento da sociedade ocidental, como acentua sempre Scalfari: “na maior parte dos casos o indivíduo, abandonado na sua solidão, não encontrou outro remédio melhor do que o de confundir-se no bando, isto é, de se tornar um sujeito anônimo e indiferenciado, sustentado somente por motivações emocionais”[xxi].

Não é mais a comunidade ou o vinculo a um determinado estrato social, mas sim “o bando” a caracterizar a sociedade sem adultos, uma sociedade que abandonou o seu dever educativo.


Os Procis, filhos de um pai ausente


Essa linha de leitura vem confirmada também na mitologia, na qual está narrada a história do homem e da mulher de todos os tempos. A categoria de “bando” lembra os Procis, magnificamente descritos por Homero, aquela massa numerosa (108 segundo a Odisseia XVI, 247 s.), violenta e parasita, dominada por uma agressividade desenfreada.

Exatamente como Peter Pan, esses não são mais crianças e nem mesmo homens; não fizeram nenhuma escolha em suas vidas; vivem cada dia, dos expedientes, gozando do instante presente, sem nenhum projeto pelo qual valha a pena empenhar-se. A atualidade psicológica e social desses personagens é digna de atenção: “Os Procis [...] são a massa supérflua que logo preenche todo vazio de poder na sociedade. Mas na psiché são o adversário interno, a desagregação da responsabilidade [...]. O que Ulisses odeia decididamente neles não é a arrogância – que não lhes é uma coisa estranha – mas o viver cada dia, sem nenhum objetivo: o ato supérfluo (anenysto epi ergo) [...]. Aquilo que esses representam não pode ser readmitido na civilização, sob a pena da sua desagregação: a hilaridade, na qual o imaturo esconde o seu medo; o dia para chegar a noite; a obstinação a conquistar a mulher e a casa, a rainha e o palácio, sem a disponibilidade para organizar o sistema familiar e econômico. Mais uma vez, é o quadro do jovem desadaptado”[xxii].

O desenvolvimento narrativo da Odisseia faz agudamente notar como esses aparecem no dia seguinte ao desaparecimento do pai. A partida de Ulisses conduz à proliferação daqueles: os Procis podem ser considerados como a prefiguração ante litteram de Peter Pan. A comparação de ambos, de fato, não é forçada: é a mesma mitologia grega a colocar esses personagens em estreita relação entre eles. Pan seria, pois, o fruto da múltipla união dos Procis com Penélope durante a ausência de Ulisses[xxiii].

Colocados de frente à “prova do arco” (que, como veremos, é um símbolo da paternidade) se mostram incapazes de enfrentá-la (tendendo o arco para lançar a flecha), isso é, de assumir uma responsabilidade generativa que pode fazer deles homens. Têm idades diferentes, porém se apresentam com uma única classe, amorfa, sem identidade.


A tarefa de se tornar adulto

Mas o que significa ser adulto? Significa, antes de tudo, aceitar não ser mais criança, renunciando aos valores e comportamentos de idades precedentes para assumir a novos: a renúncia é a condição do crescimento, como bem tinha intuído Max Scheler[xxiv].

Deixar uma fase: isto é o que o adulto atual não parece mais capaz de fazer, antes de tudo, a nível imaginativo, lamentando-se sempre da criança ou do adolescente que jamais foi. Trata-se, porém, de acolher o que Freud chamava de o princípio da realidade que passa por uma ferida, uma experiência de impotência e de mortalidade que, paradoxalmente, no momento no qual vem assumido, fortalece o ser humano.

Isto era o significado dos “ritos de passagem” ou de iniciação, que nas sociedades de cada época marcavam o ingresso do jovem na idade adulta, mediante cerimônias guiadas por adultos. Os ritos de iniciação resultam fundamentais porque têm como objeto a agressividade, o sofrimento e a morte, em outras palavras, o ser humano na sua verdade e fragilidade. O rito podia fazer isso, porque recordava a sacralidade da vida e a sua relação com Deus; isso era o significado do gesto de tirar com violência a criança dos braços da mãe (que até aquele momento era o ponto de referência peculiar) para elevá-la ao céu, um gesto com o qual ela recebe a confirmação da própria identidade: “O significado desse gesto é claro: se consagram os neófitos ao Deus celeste”[xxv]. Essa tarefa sempre foi peculiar do pai.

Quando não se cumprem os ritos de iniciação, esses não desaparecem, mas enlouquecem, dando origem às derivas do “bando”. As violências das baby gang, o bullying masculino e feminino, os estupros de grupo, os “embalos de sábado à noite”, os comportamentos de risco, o uso de drogas em grupo, a atração pelo macabro são ritos de iniciação enlouquecidos, pedidos degenerados de tomar contato com a dimensão da corporeidade, da relação, da agressividade, do perigo, da morte, mas sem que exista, no entanto, um adulto capaz de acompanhar-lhes.

O desaparecimento dos adultos se traduz também numa redefinição dos papéis familiares: não são mais os filhos que devem aprender dos pais e receber deles normas e ensinamentos, mas ao contrário, são os pais que se conformam aos critérios e aos comportamentos dos filhos, procurando desse modo conseguirem a aprovação deles.


A necessidade de um modelo

Para ser adulto deve-se, pois, ter recebido uma ferida, aquela ruptura violenta que caracteriza o ingresso na realidade representada pelos ritos de iniciação. Tomar contato com aquela ferida significa para o jovem reconhecer e acolher a própria fragilidade. Isso lhe permite afrontar a realidade, abandonando as fantasias pueris e reconhecendo os próprios desejos profundos. Tornar-se adulto não significa de nenhuma maneira sentir-se onipotente, livre de defeitos ou limites, mas ocupar o próprio lugar, aceitando a possibilidade de equivocar, acolhendo o tempo que passa[xxvi].

O primeiro ensinamento que Deus dá ao homem na Bíblia é exatamente esse: se queres viver, se queres saborear a vida, recorda-te de que eres criatura, de que não és Deus. Isso é expresso na proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (cfr. Gn. 2, 16): no trecho, aquela árvore simboliza o próprio Deus e o homem deve preservar-se do desejo de querer tomar-lhe o posto, porque acabará se destruindo. Naquele ensinamento podem-se conter as três etapas fundamentais do desenvolvimento humano: o nascimento, o desaleitamento, a derrota edípica. Essas constituem as três diferentes derrotas da onipotência, são os três “pontos de não-retorno” próprios do crescimento (em relação à condição pré-natal, ao aleitamento, a um ligame exclusivo com a mãe), indispensáveis para entrar na realidade, para ser “vivo”. Se cumpridas corretamente, essas três renúncias permitem, na idade adulta, fazer escolhas definitivas; por outro lado, a maior parte das dificuldades e do desgosto de viver é ligada exatamente a esses três aspectos.

À raiz de muitos pedidos de ajuda psicológica está frequentemente a não aceitação da própria verdade de criatura, marcada pelo limite e pela fragilidade: não se aceitar a si mesmo, antes de tudo o próprio corpo (pensemos no boom de cirurgias plásticas e do lifting com consequências também graves para a própria saúde, mas também nos distúrbios alimentares como a bulimia e a anorexia), não se aceita a própria família de proveniência, a própria história e personalidade.

Dever fundamental da mãe e do pai, o qual, como visto em outras ocasiões, é símbolo forte do Pai celeste, é apresentar novamente aos próprios filhos esse ensinamento do livro de Gênesis[xxvii], de tomar consciência dos próprios limites, condição fundamental para se tornar adulto e para produzir frutos na própria vida. Os pais podem fazer isso porque precedentemente acertaram as contas com a própria fragilidade, com a própria ferida originária[xxviii].

Se os pais querem, em vez, salvaguardar os filhos de todo tipo de dificuldade, isso levará ao aparecimento de dúvidas e frustrações interiores, que minam, à raiz, a estima de si e a capacidade de assumir responsabilidades. Principalmente os filhos terão dificuldades em aproximar-se aos seus desejos profundos, àquilo que realmente querem das suas vidas: “A clínica dos assim ditos novos sintomas mostra bem como o problema da atual insatisfação da juventude não seja tanto aquele do conflito entre o programa do impulso e aquele da Civilização [...], mas de como aceder à experiência do desejo [...]. A crise atual da operabilidade da ordem simbólica coincide com a crise do poder de interdição, mas também com a dificuldade da transmissão do desejo de uma geração a outra”[xxix].

Trata-se de saber dizer “não”, de colocar limites, impopulares certamente, mas que permitam de aceder ao desejo do coração e tornam capaz de superar os obstáculos que se entrepõem à realização dos mesmos. O limite e a frustração são elementos essenciais da educação, ainda que acompanhados do afeto e da confiança. Às vezes é o filho mesmo a pedir esse limite e que uma relação assimétrica (de adulto a filho) seja posta, também em forma não verbal, como no caso da garota surpreendida roubando em uma grande loja: “Essa jovem não estava simplesmente fraudando a lei ou gozando da emoção causada pela sua transgressão. Em modo paradoxal, ela estava fazendo exatamente o contrário: estava buscando ser vista pela lei, isto é, de fazer existir uma lei. ‘Alguém me vê? Alguém pode me ajudar a não me perder, a não me extraviar? Existe em qualquer lugar uma lei ou, mais simplesmente, um adulto que possa responder-me, que possa perceber a minha existência?’ A pergunta dos nossos jovens insiste e nos coloca com as costas contra o muro: ‘Vocês existem? Os adultos ainda existem? Há alguém ainda que saiba assumir responsavelmente o peso da própria palavra e dos próprios atos?’ Na cleptomania daquela garota podemos perceber toda a grandeza da insatisfação da juventude contemporânea”[xxx].

O filho pode compreender o valor do limite se vê nos pais não um tirano que o rejeita, nem o “camarada” que se coloca no mesmo nível dizendo-lhe sempre “sim”, mas alguém que o introduz com afeto na realidade, na sua dimensão de mediocridade e de fragilidade. O adulto pode fazer isso porque antes a acolheu em si mesmo. Isso lhe consente não colocar-se no mesmo nível daquele que é chamado a educar e de não ceder a chantagens afetivas.

Não se trata certamente de uma tarefa fácil: essa é, porém, o único modo para não fazer do filho um escravo dos próprios caprichos. A incapacidade de dizer “não” é um dos sinais mais fortes da crise do adulto e da perigosa inversão da derrota edípica, uma inversão inédita, na qual são os pais a pedir aos filhos de serem reconhecidos[xxxi].



Retomar o arco de Ulisses

A crise do adulto, reconhecida e descrita pela mitologia, pode encontrar, na mesma mitologia, possíveis saídas. Toda a primeira parte da Odisseia é chamada de Telemaqueia, a busca afanosa pelo pai ausente, por parte do filho. Ele não se resigna com o seu desaparecimento, mas deseja ver o pai, ainda que não o tenha jamais conhecido verdadeiramente, anseia de poder ter dele ao menos uma imagem para ser impressa na sua mente[xxxii].

O caso de Telêmaco é muito parecido à situação da juventude atual. Para ambos não são, certamente, algumas coisas que lhes faltam, nem mesmo o bem-estar; esses se descobrem, às vezes, desprovidos daquela representação ideal de si que somente o pai é capaz de dar.

Na Odisseia, Ulisses pode ser finalmente reconhecido como pai somente quando, no final da poesia, o filho o vê empunhar o arco, com aparência humilde, mas decidido: “parece que Homero pensou nos nossos tempos e que nos advertiu: jamais o pai desaparece totalmente. Mas não creiais de reencontrá-lo nos machos barulhentos: aqueles são os Procis, os eternos não-adultos. Se alguém, em vez, é humilde, paciente, poderia ser ele, o sobrevivente de guerras e tempestades”[xxxiii].

O arco pode simbolizar o papel e a tarefa do pai, que não é delegável; e, de fato, nenhum dos Procis tem a capacidade de manejá-lo, porque não possuem autoridade para isso. Mas o pai do qual se fala não é certamente o pai-patrão que caracterizou as nossas sociedades dos últimos dois séculos, levando ao final à sua rejeição e afastamento. Ulisses, em vez, diz com precisão Homero, sabe tender o arco como um músico acaricia a harpa, associando com esse gesto as duas funções essenciais do pai: a força e a ternura[xxxiv].

Somente quando é capaz de unirem em si essas duas virtudes, a autoridade e a ternura, Ulisses pode novamente empunhar o seu arco e meter fim à “noite dos Procis” [xxxv].


Tradução ao português:


Pe. Anderson Alves e Joyce Scoralick.




Fonte: Presbíteros




Notas:



[i] Artigo publicado em La Civiltà Cattolica, II 220-232, caderno 3885 (5 de maio de 2012).

[ii] Istat é o instituto nacional de estatísticas, um ente de pesquisas públicas na Itália (nota do tradutor).

[iii] Assim traduzimos à expressão italiana “generazione né-né”, que quer se referir àquelas pessoas que nem estudam, nem trabalham (Nota do tradutor).

[iv] MANGIAROTTI, A. Generazione “né-né”. Settecentomilla giovani “inattivi convinti” In: Corrieri della Serra, 16 de julho de 2009, p. 25.

[v] RECALCATI, M. Dove sono finiti gli adulti? In: La Repubblica, 19 de fevereiro de 2012, p. 56. O recente filme 17 ragazze (17 moças) (de Delphine e Muriel Coulin) inspirado no fato real de um grupo de adolescentes estadunidenses, unidas por um pacto comum, de ficarem ao mesmo tempo grávidas, apresenta ao mesmo tempo toda a dificuldade do mundo adulto (na escola como na família) a compreender o desconforto dessas jovens, por estarem com os mesmos problemas não resolvidos.

[vi] HUIZINGA, J. La crisi della civiltà. Totino, Einaudi, 1962, p. 115.

[vii] Veja-se as célebres análises de HEIDEGGER, M. “A questão da técnica”, In ID., Saggi e discorsi, Milano, Mursia, 1991, p. 5 -27.

[viii] FREUD, S. “La sessualità nell’etiologia delle neurosi”, in ID., Opere (1892-98), Torino, Boringhieri, 1968, 410.

[ix] Cfr. GAUCHEI, M. Il figlio del desiderio. Una rivoluzione antropologica, Milano, Vita e Pensiero, 2010, 70; cfr. 49. Cfr. os problemas levantados por PAROT, F. – TEITBAUM, E. Des enfants sans toi ni moi, Paris, Flammarion, 2002, e por J. HABERMAS, segundo o qual programar o nascimento comporta a “dificuldade de conceber-se como autônomo”, também desde o ponto de vista da responsabilidade moral (L’avenir de la nature humaine. Vers un éugenisme liberale, Paris, Gallimard, 2002, 82).

[x] O célebre estudo de Miller sobre o alto custo que a nível afetivo paga a criança “constituída dote”, isto é, sensível a acolher a necessidade do progenitor, reprimindo o próprio, se insere nesta perversa dinâmica relacional, na qual os papéis são trocados. Esta afetividade reemerge na idade adulta nos níveis nas quais tinha sido congelada, e, uma vez adulto e progenitor, traz à tona uma série de desejos desatendidos. Frequentemente tal situação está na origem da atração de profissões relacionadas com o escutar e à ajuda, como a psicoterapia. Miller resume a própria experiência dos seus vinte anos em relação a três elementos fundamentais: “1) estava sempre presente uma mãe profundamente insegura no campo emotivo, a qual para o próprio equilíbrio afetivo dependia de um certo comportamento ou modo de ser de criança. Essa insegurança podia facilmente ficar velada à criança e às pessoas do seu ambiente, escondida atrás de uma fachada de dureza autoritária ou inclusive totalitária; 2) a essa necessidade da mãe ou dos dois progenitores, correspondia uma surpreendente capacidade da criança de percebê-lo e de dar-lhe resposta intuitivamente; 3) em tal modo a criança se assegurava ‘o amor’ dos pais. Ela percebia que tinham necessidade dela e isso legitimava a sua vida e o seu existir” (MILLER, A. Il dramma dei bambino dotato e la ricerca del vero sé, Torino, Boringhieri, 1999, 16 s). Daqui vem a dinâmica instintiva de ajuda aos outros, mesmo na escolha da profissão, mas em forma perturbada, tendendo ao apagamento dos vazios afetivos que não ficaram resolvidos no curso da infância.

[xi] Cfr. CUCA, «Il matrimonio, ultimo simbolo di eternità dell’uomo occidentale», in Civ. Catt. 2011 II 431 433. Cfr. PHILIPS, A. I «no» che aiutatino a crescere, Milano, Feltrinelli, 1999, 47 s.

[xii] Cfr. GRIMAL, P. Mitologia, Milano, Garzanti, 2006, 475.

[xiii] KILEY, D. The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown up, New York, Avon Books, 1984, 26 s.

[xiv] Ivi, 23.

[xv] RECALCATI, M. «Dove sono finiti gli adulti?», cit., 56.

[xvi] POSTMAN, N. La scomparsa dell’infanzia, Roma, Armando, 1984, 156; cfr. OLIVERIO FERRARIS, A. La Síndrome Lolita. Perché i nostri figli crescono troppo in fretta, Rizzoli, 2008.

[xvii] GAUCHET, M. Il figlio del desiderio…, cit., 42; cursiva no texto. Cfr. BOUTINET, J. P.L’immaturité de la vie adulte, Paris, PUF, 1998; ID., Psychologie de la vie adulte, ivi, 2002; ANATRELLA, T. Interminables adolescences. La psychologie des 12/30 ans, Paris, Cerf-Cujas, 1998; LADAME, F. Gli eterni adolescenti, Milano, Salani, 2004.

[xviii] CATALUCCIO, F. M. Immaturità. La malattia del nostro tempo, Torino, Einaudi, 2004, 40.

[xix] SCALFARI, E. «Il padre che manca alla nostra società», in La Repubblica, 27 dicembre 1998.

[xx] Cfr. COOPER, D. La morte della famiglia. Il nucleo familiare nella società capitalistica, Torino, Einaudi, 1972.

[xxi] SCALFARI, E. «Il padre che manca alla nostra società», cit.

[xxii] ZOJA, L. Il gesto di Ettore. Preistoria, storia, attualità, scomparsa del padre, Torino Boringhieri, 2000, 115 s.

[xxiii] Cfr. GRIMAL, P. Mitología, cit., 476.

[xxiv] Cfr. SCHELER, M. Il risentimento nella edificazione delle morali, Milano, Vita e Pensiero, 1975, 53.

[xxv] ELIADE, M. La nascita mistica. Riti e simboli d’iniziazione, Brescia, Morcelliana, 1974, 24; cfr. tbm. ZOJA, L.: «A elevação da criança entre os Romanos servia ao nascimento psíquico do filho e do pai como pai» (Il gesto di Ettore …, cit., 247; cursiva no texto). De outra época e cultura, veja-se a descrição de MANDELA, N. culminante com o grito “Ndiyindoda! (‘Sou um homem!’)” (Lungo cammino verso la libertà, Milano, Feltrinelli, 2010, 35). Sobre os ritos de iniciação permanecem fundamentais os estudos de VAN GENNEP, A. I riti di passaggio, Torino, Boringhieri, 1981.

[xxvi] Cfr. RECALCATI, M. Cosa resta del padre? La paternità nell’’epoca ipermoderna, Milano, Cortina, 2011, 111-115.

[xxvii] Para ser mais preciso, os dois primeiros aspectos vêem a mãe como protagonista, o terceiro não redutível apenas à derrota edipiana, é próprio do pai e reflete o simbolismo mais complexo dos ritos de iniciação. Na realidade, ambos os pais também são fundamentais na diferente especificidade de suas intervenções, para a ajuda mútua que são chamados a dar-se, nas diferentes fases da vida dos filhos (cf. Cucci, G. Esperienza  religiosa e psicologia, Leumann [To] – Roma, Elledici – La Civiltà Cattolica, 2009, 79,98;. ID., La forza dalla debolezza. Aspetti psicologici dela vita spirituale, Roma, Adp, 2011, 121-133).

[xxviii] Cfr. RISÉ, C. Il padre, l’assente inaccettabile, Cinisello Balsamo (Mi), San Paolo, 2003, 14-24. C. CUCCI, “o pai é chamado a desenvolver um papel decisivo n avida de fé”, in Civ. Catt. 2009 III 118-127; “Il suicidio giovanile. Una drammatica realtà del nostro tempo”, ivi, 2011 II 121-134.

[xxix] RECALCATI, M. Cosa resta del padre? …, cit., 105-107. Cfr. CUCCI, G. «Il desiderio, motore della vita», in Civ. Catt., 2010 I 568-578.

[xxx] RECALCATI, M. “Dove sonno finiti gli adulti?”, cit., 57.

[xxxi] Cfr. ID., Cosa resta del padre? …, cit., 108 s.

[xxxii] “Na Telemachia o protagonista busca notícias do pai não só para saber onde era e para saber como era, mas, sobretudo, para conhecer a personalidade e desenvolver a si mesmo segundo aquele modelo» (PRIVITERA, G. A. Il ritorno del guerriero. Lettura dell’Odissea, Torino, Einaudi, 2005, 57; cfr. HOMERO, Odisseia, Torino, Utet, 2005, 1. I, 83.111.115 s. 240; 1, IV, 317).

[xxxiii] ZOJA, L. Il gesto di Ettore, cit, 113 s; HOMERO, Odissea, cit., XVI, 148 s.

[xxxiv] “O astuto Odisseu, não apenas deliberou e em todas as partes provou o grande arco, como quando um homem experto em tocar citra e em cantar move facilmente a corda [...] imediatamente moveu assim, sem esforço, o grande arco” (HOMERO, Odisseia, cit., XXI, 404-410).

[xxxv] ZOJA, L. Il gesto di Ettore…, cit., 305.



***  *  ***



A balada do nada 

Mônica Manir





Jovens festejam na noite o fato de não terem o que festejar, embalados numa felicidade compulsória





Numa usina elétrica desativada, cenário de máquinas, fiações e tubos da era do nazismo, uma boate vira a noite sem fechar. É a Berghain/Panorama Bar - vulgo Paranoia, para os brasileiros que habitam o circuito techno -, apontada por alguns como o melhor clube do mundo, ainda que seja para turista ver. Tales Ab’Sáber foi um que lá baixou, numa estada em Berlim. E de lá saiu com a certeza de que tinha material valioso para uma perícia sobre a grande noite da diversão industrial, traduzido em A Música do Tempo Infinito, livro lançado em outubro pela Cosac Naify.





Reprodução
Na Berghain a celebração rola das 23h59 de sábado para além das 21h de domingo: dança sem fim



"É uma festa intensa, que deseja não terminar jamais", diz o psicanalista sobre a balada alemã, que pulsa quase diariamente a partir das 23h59 e que, de sábado para domingo, entorpece o público com música eletrônica até a noite seguinte. Nessa perspectiva, o único sentido do dia é acionar o GPS para a próxima noitada, algo instantâneo de se fazer em Berlim, considerando a fábrica de entretenimento que é. 

Depois da tragédia em Santa Maria, as blitze que se espalharam pelo País atrás de boates-ratoeiras escancarou uma noite brasileira também alucinada, que por nada festeja tudo. Antes do incêndio, somente na cidade gaúcha eram pelo menos cinco baladas por dia, de quinta-feira a sábado. Em São Paulo capital, 500 casas noturnas foram licenciadas no ano passado e cerca de 600 esperam na fila por um alvará, enquanto outros milhares se espalharam feito gripe pelo País. 

"Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer", diz Tales. "A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é." Algo diferente dos shows de rock e dos inferninhos dos anos 1970? Em seu apartamento em Pinheiros, bairro que abriga mais de dez páginas de boates no Google, Tales tenta traduzir essa geração que, em suas palavras, vive uma experiência sensorial sem compartilhamento. Esse gaúcho, radicado desde o primeiro ano de vida em São Paulo, também faz uma crítica sobre a morte quase instantânea de mais de 230 guris num país que vendeu para si a imagem de moderno, mas que de modernidade só absorveu a excitação, o Facebook e a pirotecnia. 


A operação pente-fino nas boates do País mostrou que nos municípios brasileiros as casas noturnas brotaram a rodo. Que tipo de lazer é esse, que atrai tantos jovens?

Ele tem raízes na oferta de experiências própria da grande metrópole moderna, como os cafés concertos da Paris de Haussmann, os cabarés berlinenses dos anos 1920 e as casas de dança e jazz da Nova York da mesma época. Muito cedo se observou nessa invenção para a noite uma espécie de nova ordem internacional da diversão, ligada à organização da vida das massas na sociedade liberal. No entanto, a partir dos anos 1950 e 1960, emergiu a ideia de que a noite dos jovens estaria ligada também a um vetor político, de crítica ao sistema, no qual aquilo que era ofertado pelo mercado era vivido como a negatividade da antiga bohème. Esse movimento sempre guardou a ambiguidade de ser regulador e ao mesmo tempo um espaço imaginário de desejos conflitantes com a vida social. A partir das décadas de 1980 e 1990, há um retorno à ordem da contracultura ocidental, que teve seu ápice público e político, em plena luz do dia, em 1968 e 1970. Ele foi retirado do cotidiano, reservado para a circulação de mercado, para ser guardado, e de certo modo privatizado, na emergência da boate de massa, o novo espaço da república pop. Essa passagem histórica foi marcada pela ultrapassagem do rock - e da canção - pela música eletrônica. No Brasil, ela se condensou na balada, que não existia na minha juventude nos anos 1980. 

O que, em geral, caracteriza uma balada? 


Certa vez um jovem paciente me falou: "A balada é um lugar em que tudo muda. Quando você entra numa balada tudo vira outra coisa, você, as pessoas, o mundo. Nada do que vale fora de lá continua valendo, é um mundo à parte e outro do próprio mundo". A balada é o espaço que sustenta esse desejo. Ela dá uma amostra, um sampler, do mundo do luxo e da luxúria para os que não o possuem, ou da experiência estética antiburguesa para os adaptados. Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer. A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica do que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é. Ela mantém vivo esse potencial utópico, e ao mesmo tempo o reduz a um espaço socialmente aceito. É a sua forma de solução de compromisso, o seu sonho social. 

A balada agrega todas as classes sociais. De que juventude estamos tratando? 

Uma juventude desencantada, que teve os impulsos críticos de radicalização humanista, estética e democrática, próprios do movimento da juventude ocidental do século 20, reduzidos a práticas de consumo a partir da aceleração da cultura do dinheiro dos anos 1990 e 2000. Essa juventude tenta manter valores de vanguarda de eros e civilização, como dizia o filósofo Herbert Marcuse, comprometidos com seu destino de venda de um trabalho sem garantias, muitas vezes sem direitos efetivos, no mundo das corporações. Uma juventude atomizada, que caminha entre a baixa vida de mercado e o hedonismo de consumo do teatro excitado de sua noite. 

O que costumam festejar?

É um paradoxo. Eles festejam suas vidas difíceis de mercado, e sua inserção por um fio na coisa toda. Mais ou menos do mesmo modo que a mercadoria, por meio da cultura da propaganda, festeja a si própria sem parar. A ordem do poder atual exige celebração contínua, ligada à afirmação do indivíduo de realização do próprio prazer, desde que ele seja de mercado, apolítico. E esses jovens, que por vezes fingem um cuidadoso punkismo construído em lojas caras da moda, celebram a mesma celebração geral de seu mundo. Ou, como escrevi em meu livro, eles festejam o fato de não haver nada a festejar. É a compulsão a ser feliz, que diz muito respeito à propaganda. 

Por que há tantos megaeventos para uma geração tão voltada para si mesma?

Exatamente por isso. Nesse ponto foi o filósofo Theodor Adorno quem nos deu contribuições importantes. Quanto mais individualizado e rarefeito na vida social para defender o próprio prazer, menos exigente culturalmente é esse consumidor, e mais sua ilusão de individualidade deságua em uma administração cultural geral. Podemos dizer que o hiperindivíduo, que busca a singularidade do seu prazer nas ofertas de mercado, acaba pensando como todos os demais, em uma grande uniformidade cultural, e ele vai de fato alimentar o megafestival que legitima o presente. Estamos diante de um mundo que, na mesma medida em que afirma o indivíduo, o empobrece e o torna apenas idêntico a todos.

Vivemos uma segunda ‘idade da festa’, expressão cunhada pelo jornalista Gay Talese que você recupera no seu livro? 

É realmente muito interessante a formulação de Talese, que percebeu de modo intuitivo e profundo a transformação iminente do grande movimento político da contracultura jovem em uma cultura erótica da festa administrada. Em uma imensa festa contracultural de Andy Warhol, embalada pelo Velvet Underground num ginásio de Nova York, no auge dos protestos públicos contra a Guerra do Vietnã, Talese percebeu o destino da coisa toda: a política seria em breve substituída pela imagem. Seu texto é o primeiro a falar da celebração de tudo e de nada, que passou a ser a cultura jovem no nosso tempo, em que há muita produção de imagem, excitação e gozo, mas, para lembramos os termos do escritor, "nada está acontecendo". Um lance de espírito de gênio. Por que a festa precisa sugar tudo para ela? Tudo tem que se expressar como excitação. É a mesma lógica da mercadoria quando ela aparece: excitar para circular. Todos precisam estar nesse estado porque, caso contrário, não correspondem ao mundo. Esse momento está ligado ao desligamento do vetor político da contracultura. Ele passa a ser encenado, não é mais o embate político real.

Onde estaria esse vetor político hoje? 

É uma grande angústia ver esse hipermundo pacificado porque as pessoas foram convencidas de que a política se resolve nos partidos. Se a gente não acredita nas respostas que estão sendo dadas, a gente não acredita nessa política e ela não cumpre seu mandato, embora diga que cumpra. Adorno dizia isso: a ideologia não é mentirosa no seu conteúdo. O conteúdo da política é uma verdade racional humana. A ideologia é mentirosa porque ela disse que já deu o que prometeu, cortando o processo de demanda social. A política está congelada nessa estrutura do capital. Manter isso, que é extremamente instável e estável, implica uma energia incrível, inclusive de repressão. Em 2008, vimos como é difícil manter o equilíbrio de um negócio que tem que gerar cada vez mais lucro. A política está naquilo que essa própria estrutura aparentemente fechada não consegue sustentar mais. Essas são as crises reais, que a ideologia não consegue barrar. No plano simbólico da expressão cultural, é tudo política de imagem, de alimentar o todo.

Nesse texto, [Guy] Talese também dizia que, para existir, a pessoa precisava ser vista. Hoje, para existir, ela necessita ser fotografada e postar-se no Facebook. 

Era o tempo dos famosos 15 minutos de fama de Andy Warhol, o vínculo subjetivo com a sociedade do espetáculo do escritor francês Guy Debord. Nos anos 1960, começa a surgir essa percepção de que as pessoas estão encenando alguma coisa. Tão importante quanto ser alguém é produzir sua imagem. Essa foi a grande mensagem social da televisão. A internet é uma grande universalização dessa tendência, acompanhada de fragmentação e algum grau virtual de participação. Eles estão o tempo todo se comunicando, em grande parte querendo saber onde está a melhor festa. Essa prática cria, a cada noite, um mapa da vida e da cidade, um GPS das baladas. E esse mapa é mundial.

Isso também vigora com força no Oriente? 

Repare: todo filme que trata de contradições políticas no Oriente traz uma baladinha. É uma espécie de enclave da cultura ocidental, que significa a inversão de todos os valores ao redor. Essa balada está sintonizada com a balada ocidental, a mesma música, a mesma moda, o folgazão do consumo de diversão internacional.

Ironicamente, todas as câmaras do circuito interno da boate Kiss desapareceram. Ninguém quer ficar com a imagem de responsável pela tragédia… 

Esse episódio catastrófico revela uma situação de descompasso do Brasil. O País produziu para si mesmo o discurso edificante de que se modernizou rapidamente, o que não é verdade em muitos aspectos da vida. A Kiss é uma pequena boate, mas com características dessa cultura global da casa noturna cuja relação entre empresário, prefeitura e agentes públicos de segurança é toda degradada. Ninguém é culpado, e todo mundo é. São os déficits de técnica brasileiros, técnica pública, inclusive. 

Durante manifestações pedindo justiça, familiares mostraram cartazes revelando sua indignação com ‘a ganância de gente corrupta’. Que elementos dessa tragédia mostram essa ganância? Os seguranças impedindo a saída dos jovens porque eles não haviam pago a consumação, por exemplo? 

Esse incêndio é uma espécie de fato infinito. Ele congrega uma série de fatos do mundo - legais, políticos, simbólicos. Vamos pensar nos seguranças, por exemplo. Eles têm a mentalidade da polícia, se é que não são policiais. É a mentalidade autoritária em que a relação com o outro é sempre de predomínio pela força, de inabilidade para lidar com o público, com alguém que não seja "ordem e progresso". É esse autoritarismo que o patrão espera dele, aliás. Mas onde está a brigada de incêndio, que seria a outra consciência? Não tem! Morreu gente por causa disso, desse entrave à saída. 

Também havia uma quantidade de pessoas muito além da capacidade do lugar… 

Nos anos 1980, quando começaram a surgir as boates, elas não eram assim. O Madame Satã não era assim. E antes, nos anos 1950, 60, muito menos. O público era de adultos, os inferninhos eram micro, um tipo de boemia completamente outra, era o mundo do João Antônio, de Copacabana. Mudou a escala. Isso é próprio da geração, mas tem o elemento universal da catástrofe. Ela representa a humanidade, estamos todos diante dela e ela fala a todos. Em parte porque ocupam todas as revistas, todos os jornais. É a tautologia da indústria da comunicação. Em parte porque, de fato, algo diz que poderia ter sido com meu filho ou comigo. As pessoas se sentem comprometidas. Se elas fossem comprometidas assim com a política, seria fascinante. Mas não são.

Você reserva um longo capítulo para as drogas no seu livro. Que papel elas têm nessa grande noite da diversão industrial? 

As drogas, no movimento contracultural da juventude ocidental modernista, eram uma experimentação erótica, faziam parte de um projeto no qual se poderia estabelecer outra ordem de existência na vida moderna. Elas também foram capturadas para dentro das casas noturnas, numa fusão com a música techno, especialmente com a explosão do ecstasy no final dos anos 1980 e começo dos 90. A droga é estrutural da própria experiência, não é mais uma possibilidade. Ela é necessária para que a coisa exista.

Estamos falando de drogas e álcool? 

Sim, dos dois. Isso disparou uma realidade de excessos. A partir do surgimento da música da noite, aparece um novo tipo de cultura da droga, que é uma drogadição exibida, conspícua. O lugar por excelência disso é a boate. Mas a partir daí existe uma universalização das drogas como diversão, portanto como objeto de consumo de massa.

E a música? De onde veio a necessidade da pirotecnia para acompanhá-la?

Quando os Beatles tocavam nos estádios nos anos 1960, quando inauguraram essa era de espetáculo de massa e expressão pop, grandiosa e sedutora, eram quatro músicos em cima de um palco e só. E havia 60 mil pessoas vendo! Jimi Hendrix, quando botou fogo na guitarra, foi um xamanismo, uma espécie de autossacrifício, uma coisa dionisíaca de incendiar uma parte de si mesmo, ao mesmo tempo amando e atacando o que o representava. Mas foi um evento individual. Depois começa a surgir essa espetacularização visual do mundo da canção. Em 1968, 69, Pink Floyd começa a fazer projeções de imagens, uma produção mais barata. Então, num certo momento dos anos 1980, isso vira um espetáculo pirotécnico gigantesco, com explosões, bolas de fogo. Agora, as pequenas bandas do interior do mundo querem soltar seus rojões e fogos de artifício. Está aumentando a espetacularização, o que significa que a música perdeu importância.

Você chama o DJ da música techno de um ‘Sísifo de nosso tempo, pulsando imensamente ao mesmo tempo que anuncia o vazio’. Mas músicos de outros ritmos que alimentam as baladas também não param. É o tal corpo-coração, enquanto a alma alucina?

Sim, é o corpo-suor, em que tudo tem que ser traduzido em pulsação. No Brasil, isso nos chegou muito pelo axé, com as cantoras dançando o tempo todo. As coisas têm que ser levadas no limite da expressividade, do desgaste físico. A banda de Santa Maria se chama Gurizada Fandangueira. Fandango é o velho baile gauchesco de dar o pão, que era feito com sanfona, uma música popular, de fazenda. E o fandango da Gurizada virou isso, uma exibição com sinalizadores que deseja agradar a 1.500 pessoas. Grandes artistas, como Madonna e Lady Gaga, fazem espetáculos assim também. A arte vai sendo deslocada para essa coisa mais infantil. Às vezes a música é playback, mas não é ela que está em jogo. É este show. Um show de pura excitação. 


Fonte: ESP

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