sábado, 30 de novembro de 2013

'Fora da consciência... ainda há salvação?'




Até o Concílio Vaticano II, dizia-se: extra ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja, não há salvação”).  
Ao que parece, essa verdade inconteste vem cedendo lugar a outra afirmação (será este o único dogma da Igreja nova?): Fora da fidelidade à consciência,  não há salvação!  
Não é essa a mais perfeita “revivescência” do modernismo, condenado por São Pio X há mais de um século?






Raphael de la Trinité


‘A reta razão’

A capacidade de conhecer o bem objetivo mediante a consciência subjetiva é expressa pelo catolicismo com o conceito clássico de sindérese, definido pelo Catecismo como "a percepção dos princípios da moralidade" (art. 1780; cf. também Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 79, a. 12). O termo vem do latim, synderesis, que reproduz o grego syneidesis, isto é, precisamente "consciência". A sindérese expressa a capacidade luminosa de cada consciência humana de reconhecer o bem, mesmo prescindindo do próprio interesse e das diversas circunstâncias históricas e geográficas — a capacidade de saber se se está fazendo o bem ou não, ou seja, a capacidade de juízo responsável, a qual é fundada na liberdade efetiva de que gozamos. Normalmente, segundo essa acepção, fala-se em "luz da consciência" ou “voz da consciência". As expressões “consciência pesada” ou “remorso de consciência”, por exemplo, são empregadas em sentido afim. Noutros termos, visto que a nossa consciência conhece os princípios básicos da Lei Natural, sempre que nos desviamos da observância dos mesmos, o “tribunal” da consciência (ou seja, “a reta razão”) nos acusa. A isso Nosso Senhor se refere quando afirma: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”. (Jo, 7, 19 a 30).

A tradição católica é clara a esse respeito. Assim diz a Bíblia: "A consciência de um homem às vezes costuma perceber melhor do que sete sentinelas colocadas no alto para espiar" (Eclesiástico, 37, 14). Na mesma direção afirma São Paulo: "Tudo o que não vem da consciência é pecado" (Romanos 14, 23). Nosso Senhor, igualmente, disse: "Por que não julgam por si o que é certo?" (Lucas 12, 57).

Contudo, uma objeção primeira se levanta: pode ocorrer que acha um choque entre o que diz a consciência, de um lado, e o que preceitua a Fé, de outro?


Há incompatibilidade entre razão e fé?


A fé e razão não se opõem entre si, porque ambas procedem de Deus; são como que dois raios que têm um só foco de luz. Ensina o Concílio Vaticano I (Sessão III, capítulo IV): o mesmo Deus, que revelou os mistérios e nos comunica a fé, infundiu no espírito humano a luz da razão. Ora, Deus não pode negar-se a si mesmo; sendo a própria verdade, não pode contradizer-Se. Aquilo que é verdadeiro nunca poderá entrar em contradição com a mesma verdade.

A razão natural é uma luz que Deus nos concedeu para adquirir os conhecimentos abarcados pela ordem natural, e, como lampejo da luz divina, descortina, de forma prodigiosa, as verdades naturais mais recônditas.

A fé, por sua vez, é também uma luz; porém, luz superior, sobrenatural, a qual nos desvenda as coisas que, embora se achando fora de Deus e pertencentes à ordem natural, Deus Se dignou revelar-nos. Dentre estas, muitas não podemos conhecer; relativamente a outras, estribados tão-só com nossas forças naturais, nem mesmo somos capazes de suspeitar de sua existência.

Certas realidades estão muito acima de nossa razão, mas não são contrárias à mesma. Podemos exemplificar com o seguinte paralelo: são como o telescópio para os olhos — ou seja, aquilo que a olho nu não se pode ver nem alcançar, graças ao telescópio torna-se acessível à nossa visão.

As contradições que os inimigos da Religião Católica afirmam haver entre a fé e a ciência, ou entre a fé e a razão, são apenas aparentes. Com efeito, eis a lição que nos proporciona o supracitado Concílio Vaticano I: essa (falsa) oposição só se verifica quando os dogmas da fé não são compreendidos e expostos de acordo com a doutrina e o espírito da Igreja, ou, quando os caprichos da imaginação humana são tidos como axiomas pela razão.

Ao contrário do que afirmam pessoas mal intencionadas ou mal informadas, a razão jamais será compelida — nem por Deus, nem pela Igreja — a aceitar sem provas a Revelação, como se a inteligência devesse curvar-se à força aos ditames de uma fé nebulosa ou enigmática.

Ao contrário, a Sagrada Escritura nos admoesta a “não crer em qualquer espírito sem provar que vem de Deus” (1ª João, IV, 1).

Fiel à máxima de São Paulo, segundo o qual todos os nossos atos de culto devem ser feitos em conformidade com a razão (Rom. XII, 1), a Igreja ensina que o ato de fé é obséquio razoável. Significa: a) um ato de culto em serviço ou louvor à Divindade; b) realizado em concordância com a razão.

Para isso, não é indispensável que as verdades da fé sejam evidentes por si (evidência da verdade); basta que estejamos seguros quanto à autoridade da pessoa que as formula (evidência da credibilidade da verdade). Sábios ou ignorantes a todo instante acreditamos cegamente em muitas realidades da ordem natural que não compreendemos, ou não somos capazes de demonstrar. Contudo, ao admitirmos tais realidades, fazemo-lo porque temos a convicção segura de que outros homens já as comprovaram. Eis o que pede a razão.

Um exemplo característico é a fé de Abraão. Deus lhe prometera numerosa descendência. Mais tarde, porém, mandou-lhe imolar o seu filho único. Como explicar esse paradoxo? Abraão não hesitou, pondo-se logo a executar a ordem divina, pois estava convicto acerca da veracidade de Deus, isto é, tinha plena certeza de que Ele manteria a palavra, como de fato sucedeu. Conforme sabemos, no último momento, o anjo enviado por Deus reteve o cutelo de Abraão, impedindo-o de imolar Isaac.

Como atuam os modernistas em face disso?

Eis como o Papa São Pio X relata o quadro:

Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já inclinado certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião. http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_po.html  [grifos nossos]

A Igreja Católica sempre rejeitou o fideísmo, isto é, a vontade de acreditar contra a razão.

Santo Agostinho, junto com muitos outros autores cristãos, é testemunha de uma fé que se exercita com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste caminho, Santo Anselmo dirá, em seu Proslogion, que a fé católica é fides quaerens intellectum, e que a busca da inteligência é um ato interior do acreditar. Será especialmente São Tomás de Aquino quem lidará com a razão dos filósofos, mostrando a força fecunda e sempre nova do empenho racional que inunda o pensamento humano a partir dos princípios e das verdades da fé cristã.

A fé católica é razoável e tem confiança na razão humana. O concílio Vaticano I, na constituição dogmática Dei Filius, disse que a razão é capaz de conhecer com certeza a existência de Deus através da criação, e que apenas a fé tem a oportunidade de conhecer “facilmente, com certeza absoluta e sem erro “(DS 3005) as verdades sobre Deus, à luz da graça. O conhecimento da fé, pois, não é contrário à razão.


O Papa Francisco e a “consciência”


Em face disso, pergunta-se: será que cada um pode seguir a sua concepção do bem e do mal, firmando-se em sua própria consciência?

"A questão para quem não crê em Deus está obedecer à própria consciência", escreveu o papa a Scalfari. E aqui a acusação é de subjetivismo, porque, se cada um deve fazer o que a sua consciência lhe dita como bem e combater o que ela lhe aponta como mal, desapareceria o bem entendido como valor objetivo, haveria uma espécie de imunidade e de impenetrabilidade em relação ao juízo da consciência, a Igreja perderia a sua função de guia e de controle das almas, não haveria mais bem graça nem pecado, e não restaria nada mais do que uma "luta de todos contra todos, uma luta estrênua, por ser realizada pelo bem e não pelo ganho ou por outro contingente". Segundo De Marco, é por isso que as visões particulares "devem ser reguladas por um soberano", isto é, por uma autoridade externa, sejam as leis humanas, ou a lei de Cristo, que "não tem nenhuma nuance concessiva em termos individualistas".

Reiterando o mesmo pensamento, o Papa Francisco, em seu documento recém-lançado, afirma:  Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa divina, viver “justificados por meio da graça de Deus” e, assim, “associados ao mistério pascal de Jesus Cristo”. http://www.vatican.va/holy_father/francesco/encyclicals/documents/papa-francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei_po.html


Pergunta-se: Quem decide o que é certo e o que é errado?

A Igreja deixou de ser mestra infalível da verdade?

Até o Concílio Vaticano II, dizia-se: extra ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja, não há salvação”).

Ao que parece, essa verdade inconteste vem cedendo lugar a outra afirmação (será o único dogma da Igreja nova?): Fora da fidelidade à consciência,  não há salvação!

Não é essa a mais perfeita “revivescência” do modernismo, condenado por São Pio X há mais de um século?

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