segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Palavra do Sacerdote: Mentalidade racionalista levou ao protestantismo



DESTAQUE


 O protestantismo nasceu sob o signo do racionalismo, que, principalmente a partir do teólogo franciscano inglês Guilherme de Occam (1300 – 1350), vicejou então nos meios católicos, e foi fazendo o seu caminho até ser mais tarde, por assim dizer, codificado pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) em seu tristemente célebre Discurso sobre o método.

A fé em Jesus Cristo é necessária à salvação, é claro! Mas se eu tenho fé em Cristo Jesus, devo ser coerente em seguir os seus mandamentos, e, portanto, praticar as boas obras que ele mandou! Que sentido faz ter fé em Jesus Cristo e não conformar a vida aos seus ensinamentos? Por isso disse Jesus aos fariseus: “E vós também, por que transgredis o mandamento de Deus? [...] Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15, 3 e 7-8). E no Evangelho de São João (14, 15): “Se me amais, observai os meus mandamentos”. De onde conclui São João: “Quem diz que O conhece [a Deus], e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não está nele”(I Jo 2, 4).
[...] o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente [...] Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2, 14-26).
É que as boas obras são dispostas por Deus no nosso caminho, isto é, Ele é Quem nos dá o impulso (a graça) para as praticarmos, de modo que a fonte delas vem toda da graça de Deus. Nem por isso Deus dispensa a nossa predisposição à cooperação, sem a qual Ele não nos salva. Essa cooperação –– portanto, fruto da graça –– é necessária, e conseqüentemente meritória para alcançarmos a salvação. Daí a frase lapidar do grande Santo Agostinho: "Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te" (Aquele que te criou sem tua cooperação, não te salvará sem tua cooperação) (Serm. 169, XI; PL 38, 923).


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A Palavra do Sacerdote


Cônego José Luiz Villac

Pergunta — A paz de Cristo. Gostaria de expressar através destas linhas minha discordância quanto às explicações referentes às perguntas feitas quanto às passagens que se referem ao ladrão na cruz e à parábola do rico e de Lázaro. O Apóstolo São Paulo, um dos formadores da espinha dorsal da doutrina do Novo Testamento, é bem nítido em suas palavras em Efésios (cap. 2, vers. 8 e 9: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe”. Fica claro, neste e em muitos outros textos do Novo Testamento, que o único elemento necessário à salvação do homem é a fé em Cristo Jesus. “Mas a todos quantos o receberam, aos que Crêem [sic, em maiúscula] no seu nome, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus” (Evangelho de João, cap. 1, vers. 12). Vale ainda mencionar as palavras de Paulo em Romanos cap. 3, vers. 16: “Sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas sim pela fé em Jesus Cristo. Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei, pois pelas obras da lei ninguém será justificado”. Desde já agradeço a atenção. Na graça de Cristo Jesus.

Resposta — A presente seção de Catolicismo tem por finalidade a orientação e formação dos católicos; portanto, é a eles primordialmente dirigida. Curiosamente, ela tem sido lida também por protestantes, que têm manifestado frequentemente sua discordância, às vezes em termos agressivos, outras vezes em termos cordatos, como é o caso da presente missiva. Pareceu-nos conveniente, como exceção, aproveitar o ensejo para apontar aos que nos leem um dos equívocos fundamentais da exegese protestante, que os leva a não aceitar a interpretação católica das Sagradas Escrituras. Quiçá isso possa ajudar as almas retas que entre eles existam a reencontrar o caminho da verdade e aceitar o ensinamento da Igreja.

Mentalidade racionalista levou ao protestantismo

Lutero, para salvar a doutrina que inventara, teve a desfaçatez de excluir a Epístola de São Tiago da lista dos livros canônicos...

O protestantismo nasceu sob o signo do racionalismo, que, principalmente a partir do teólogo franciscano inglês Guilherme de Occam (1300 – 1350), vicejou então nos meios católicos, e foi fazendo o seu caminho até ser mais tarde, por assim dizer, codificado pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) em seu tristemente célebre Discurso sobre o método. A meio caminho, o racionalismo infectou o frade agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), que criou o protestantismo.
O racionalismo se caracteriza por uma simplificação artificial do raciocínio, que o inabilita a perceber a realidade em toda sua complexidade, cheia de nuances e matizes. Como alguém que quisesse desenhar uma curva com uma sequência de segmentos retos... Não sem razão, Pascal comparou-o ao raciocínio geométrico (esprit geométrique), em oposição ao espírito de finura (esprit de finesse), que sabe captar e se conformar à multiplicidade de aspectos dos entes, fatos e situações.
A carta que estamos analisando está voltada a defender a conhecida tese protestante da sola fide, que tínhamos impugnado nesta seção no nº 655 de Catolicismo (em julho do ano passado). Isto é, a falsa tese de que “o único elemento necessário à salvação do homem é a fé em Cristo Jesus”, como afirma o missivista. Consequentemente, para ele, como para os protestantes em geral, não há necessidade das boas obras para alcançar a salvação: o indivíduo pode pecar à vontade, cometer os maiores crimes; se tiver fé, se salvará. É uma doutrina muito cômoda, mas falsa, e evidentemente não leva à salvação. O missivista aduz em sua defesa dois textos de São Paulo, que analisaremos em seguida.

A fé, se não tiver obras, é morta em si mesma

Antes de fazê-lo, porém, convém apontar desde logo a falta de bom senso do raciocínio, característico da mentalidade racionalista. A fé em Jesus Cristo é necessária à salvação, é claro! Mas se eu tenho fé em Cristo Jesus, devo ser coerente em seguir os seus mandamentos, e, portanto, praticar as boas obras que ele mandou! Que sentido faz ter fé em Jesus Cristo e não conformar a vida aos seus ensinamentos? Por isso disse Jesus aos fariseus: “E vós também, por que transgredis o mandamento de Deus? [...] Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15, 3 e 7-8). E no Evangelho de São João (14, 15): “Se me amais, observai os meus mandamentos”. De onde conclui São João: “Quem diz que O conhece [a Deus], e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não está nele”(I Jo 2, 4).
O Apóstolo São Tiago resume toda essa doutrina de modo lapidar: “Que aproveitará, irmãos meus, se alguém diz que tem fé e não tem obras? Porventura poderá salvá-lo tal fé? [...] Assim, também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma. [...] Mas queres tu saber, ó homem vão, como a fé sem obras é morta? Abraão, nosso pai, não foi ele justificado pelas obras, oferecendo seu filho Isaac sobre o altar? Tu vês que a fé cooperava com as suas obras; e que a fé foi consumada por meio das obras. [...] Vedes, pois, que o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente? [...] Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2, 14-26).
O trecho é tão concludente, que Lutero, para salvar a doutrina que inventara, teve a desfaçatez de excluir a Epístola de São Tiago da lista dos livros canônicos... Exclusão inútil, pois, como vimos, ela nada mais é do que a conclusão lógica das palavras de Nosso Senhor relatadas por São Mateus e São João, que citamos no parágrafo anterior.

De que obras fala o Apóstolo São Paulo?
Não obstante, São Paulo afirma taxativamente que “pelas obras da lei não será justificado nenhum homem diante dele [de Deus] (Rom. 3, 20). E mais adiante: “Porquanto sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei” (Rom 3, 28). [Nossas referências à Sagrada Escritura diferem das do missivista, pois naturalmente ele utilizou uma versão protestante, com outra numeração dos versículos].
“Aí está –– bradará o missivista –– a doutrina de Paulo contradiz a de Tiago!”.
A exegese católica, diante dessa aparente contradição, analisa profundamente o texto em questão, para ver exatamente em que contexto se encaixam as palavras de um e outro Apóstolo, pois não há contradição na doutrina revelada.
Ora, lendo o trecho todo de São Paulo, vê-se que ele não está falando das boas obras de modo geral, mas sim de certos preceitos da lei mosaica que cabia aos judeus observar, e que alguns destes, já convertidos ao cristianismo, queriam que os gentios também convertidos observassem — como a circuncisão, por exemplo —, ao que São Paulo se opunha. Essa questão foi levada a São Pedro e demais Apóstolos reunidos em Jerusalém, os quais, no chamado Concílio de Jerusalém, o primeiro concílio da Igreja, resolveram de acordo com o parecer de São Paulo (cfr. Act 15, 1-34).
À luz destes esclarecimentos, releiamos São Paulo: “Onde está pois, [ó judeu] a tua glória? Foi excluída. E por que lei? Pela das obras? Não; mas pela lei da fé. Porquanto sustentamos que o homem é justificado pela lei da fé, sem as obras da lei. Porventura Deus só o é dos judeus? Não o é ele também dos gentios? Sim, certamente ele o é também dos gentios; porque há um só Deus, que justifica pela fé os circuncidados, e que também pela fé justifica os incircuncisos. Destruímos nós, pois, a lei com a fé? Longe disso; antes confirmamos a lei” (Rom 3, 27-31).
Mais adiante, prossegue São Paulo: “Também David proclama bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça sem obras [...]. Ora, esta bem-aventurança é somente para os circuncidados, ou também para os incircuncisos? Porquanto dizemos que a fé foi imputada a Abraão como justiça. Como lhe foi ela, pois, imputada? Depois da circuncisão ou antes da circuncisão? Não foi depois da circuncisão, mas antes dela. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça, recebida pela fé antes da circuncisão, a fim de que fosse pai de todos os crentes incircuncisos, para que também a eles lhes seja imputada a justiça” (Rom. 4, 6 e 9-11).
Fica claro que as obras, às quais São Paulo se refere, são aqueles preceitos legais (cerimoniais) que os judeus deviam observar como ratificação de sua Aliança com Deus, como a circuncisão, repetidamente mencionada, a qual não havia necessidade de impor aos gentios convertidos. Quanto aos Dez Mandamentos da Lei de Deus, dados a Moisés no Monte Sinai, constituem uma síntese da Lei Moral, que tanto circuncisos quanto incircuncisos devem observar. O que resulta na prática de boas obras. Não há, pois, contradição entre São Paulo e São Tiago.
O outro trecho alegado pelo missivista é da Epístola de São Paulo aos Efésios: “Porque é pela graça que fostes salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus, não vem das vossas obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2, 8-9).
Aqui temos um exemplo típico do vezo protestante de isolar uma frase da Escritura e começar a raciocinar a partir dela, sem verificar o contexto. Ora, bastaria que o missivista tivesse lido o versículo seguinte, para perceber que Deus não dispensa a prática das boas obras: “Porque somos obra sua, criados em Jesus Cristo para boas obras, que Deus preparou para caminharmos nelas” (Ef 2, 10).
Qual é a interpretação autêntica deste versículo, dada pela Igreja Católica? É que as boas obras são dispostas por Deus no nosso caminho, isto é, Ele é Quem nos dá o impulso (a graça) para as praticarmos, de modo que a fonte delas vem toda da graça de Deus. Nem por isso Deus dispensa a nossa predisposição à cooperação, sem a qual Ele não nos salva. Essa cooperação –– portanto, fruto da graça –– é necessária, e consequentemente meritória para alcançarmos a salvação. Daí a frase lapidar do grande Santo Agostinho: "Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te" (Aquele que te criou sem tua cooperação, não te salvará sem tua cooperação) (Serm. 169, XI; PL 38, 923).
Como se vê, estamos diante de raciocínios um tanto complexos, pouco ao gosto da mentalidade racionalista, mas nem por isso deixam de ser inteiramente verdadeiros!

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