sábado, 9 de agosto de 2014

A verdadeira origem (e também algumas falsas) da expressão ‘na bacia das almas’


DESTAQUE

Nas igrejas francesas do período medieval tardio, “bacias das almas” eram irmandades criadas para angariar fundos que finan­ci­as­sem missas em favor das almas do purgatório.

Na tradição católica as almas do pur­ga­tó­rio estavam em situação par­ti­cu­lar­mente des­fa­vo­rá­vel. Estavam na ante­câ­mara do Paraíso, mas sofriam punições idênticas às do Inferno, e da sua posição entre os dois não tinham mais como oferecer ofertas, jejuns e peni­tên­cias de modo a expiar os seus próprios pecados. Para diminuir a extensão da sua pena tinham de depender da boa vontade dos vivos.

Isto é o que diz A aplicação dos méritos em As divinas gerações:

Este é um com­po­nente fun­da­men­tal da noção católica de pur­ga­tó­rio: a ideia de que os méritos dos cristãos vivos podem ser aplicados na com­pen­sa­ção dos pecados não ressarcidos dos cristãos mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz oferecendo-se missas, ofertas e orações — não aos mortos, mas em favor deles.

*** *** ***


A ver­da­deira origem (e também algumas falsas) da expressão ‘na bacia das almas’
Por Paulo Brabo






A beleza das expres­sões populares está em que para usá-las ninguém precisa saber a sua origem – muito menos saber ao certo o que sig­ni­fi­cam. O que quer dizer exa­ta­mente vender alguma coisa “na bacia das almas?” O que o noti­ciá­rio quer dizer com “a seleção se clas­si­fi­cou na bacia das almas?”

Para o Houaiss, a expressão quer dizer sim­ples­mente “a custo extre­ma­mente baixo”, o que cobre o primeiro sentido acima, mas não o segundo. O Aulete assinala o sentido de “situação dramática, deses­pe­ra­dora, crítica”, e nisso parece mais próximo do uso popular. Ambos, porém, são superados pela definição do Plínio, em sua con­tri­bui­ção (de resto anônima) no Dici­o­ná­rio Informal:

Último momento, última opor­tu­ni­dade oferecida como piedade, quando outras opor­tu­ni­da­des foram deixadas ou esque­ci­das anteriormente.

Essa definição tem a dupla vantagem de cobrir todos os usos, e de remeter ainda à origem da expressão. Porque, em seu sentido original, a bacia das almas era o recurso final dos que não tinham quaisquer outros recursos.

Bassin des âmes, a matriz francesa

Nas igrejas francesas do período medieval tardio, “bacias das almas” eram irman­da­des criadas para angariar fundos que finan­ci­as­sem missas em favor das almas do purgatório.

Na tradição católica as almas do pur­ga­tó­rio estavam em situação par­ti­cu­lar­mente des­fa­vo­rá­vel. Estavam na ante­câ­mara do Paraíso mas sofriam punições idênticas às do Inferno, e da sua posição entre os dois não tinham mais como oferecer ofertas, jejuns e peni­tên­cias de modo a expiar os seus próprios pecados. Para diminuir a extensão da sua pena tinham de depender da boa vontade dos vivos.

Isto é o que diz A aplicação dos méritos em As divinas gerações:

Este é um com­po­nente fun­da­men­tal da noção católica de pur­ga­tó­rio: a ideia de que os méritos dos cristãos vivos podem ser aplicados na com­pen­sa­ção dos pecados não res­sar­ci­dos dos cristãos mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz oferecendo-se missas, ofertas e orações — não aos mortos, mas em favor deles.
Essa aplicação dos méritos é a transação que faz a fila do pur­ga­tó­rio andar. Se não contarem com a inter­ven­ção inde­ni­za­dora dos vivos, as almas do pur­ga­tó­rio terão de purgar suas dívidas através de seus próprios sofri­men­tos, processo que é tão dolorido quanto demorado. Nessas horas vale mais ter um amigo na terra do que um no céu.

No res­sar­ci­mento dos débitos do pur­ga­tó­rio, não havia moeda mais forte do que o sacri­fí­cio da missa. As famílias ricas ofereciam diversas missas em favor dos seus mortos, mas [o oferecimento das] missas era (por assim dizer) um negócio caro. Os pobres ofereciam em favor dos mortos orações e outras peni­tên­cias, mas no que dizia respeito ao enorme potencial de res­sar­ci­mento das missas, estavam descobertos.

A bacia das almas era o recurso dos que não tinham outro recurso.

Na Europa do século XIV, quando a ideia de pur­ga­tó­rio alcançava popu­la­ri­dade sem pre­ce­den­tes e o sen­ti­mento popular em favor das “almas santas e aflitas” do pur­ga­tó­rio era for­tís­simo, muitos movi­men­tos reli­gi­o­sos se orga­ni­za­ram para aliviar os apuros desses desfavorecidos.

A igreja [de Saint Martin] mantinha também um bom número de “bacias” para a arre­ca­da­ção de ofertas, que eram dedicadas a entidades espi­ri­tu­ais (Bacia das almas do pur­ga­tó­rio, Bacia de NotreDame) ou a causas sociais (Bacia do l’HôpitaldesPauvres, Bacia de l’Ouvre)1.

Nas igrejas francesas a bacia das almas do pur­ga­tó­rio era tanto um reci­pi­ente de coleta (um prato ou bacia em que as ofertas eram reco­lhi­das) quanto um fundo coletivo de doações:

Em 1530, Jean Tabaux, padre, e Pierre, seu irmão, fundaram uma pensão anual em favor da bacia das almas do pur­ga­tó­rio da igreja de Valence, e doaram, para esse fim, uma vinha na juris­di­ção de Valence, conhecida como Quinze Ventos, defronte à vinha de Jean de Boyer, etc.
[...] Em 1527, Sans e Pierre de Boyer, irmãos, doaram, à bacia das almas do pur­ga­tó­rio da igreja de Valence, a casa, campos, vinhedos e florestas conhe­ci­dos como Bazin2.




Em seu estudo Lesprêtresdupur­ga­toire (XIVe et XVesiècles) a medi­e­va­lista Michelle Fournié reca­pi­tula as carac­te­rís­ti­cas da instituição:

bacia das almas do pur­ga­tó­rio da catedral Saint-Alain de Lavaur é, como as outras asso­ci­a­ções da mesma espécie, uma espécie de confraria sem confrades, um organismo piedoso admi­nis­trado por quatro repre­sen­tan­tes leigos eleitos por um ano. Seus nomes aparecem anu­al­mente no cabeçalho das suas pres­ta­ções de contas, e assumem seus cargos no Natal.

Esses repre­sen­tan­tes fazem circular durante as missas um prato de ofertas ou bacia/bassin, na qual recolhem as ofertas dos fiéis. Eles admi­nis­tram, além disso, as pro­pri­e­da­des “do pur­ga­tó­rio”; vendem ou adquirem bens imo­bi­liá­rios e anuidades, recebem o censo das vas­sa­la­gens, o aluguel dos arren­da­tá­rios, as doações tes­ta­men­tá­rias e por vezes a herança integral de doadores generosos.
A bacia das almas do pur­ga­tó­rio tem uma vocação par­ti­cu­lar: a cele­bra­ção de missas pelas almas do pur­ga­tó­rio, cele­bra­ção que se apoia sobre um calen­dá­rio litúrgico original.

As bacias atra­ves­sam o Atlântico
A prática e a ins­ti­tui­ção da bacia das almas foi, também,adotada em Portugal – onde, segundo a Dra. Adalgisa Arantes Campos (UFMG), “a devoção às almas do pur­ga­tó­rio contou com uma vita­li­dade ímpar”, – e dali é que chegou ao Brasil.

As Cons­ti­tui­ço­ens Primeiras do Arce­bis­pado da Bahia, que regu­la­men­tam na Colônia as decisões do Concílio de Trento, recomendam:

“(…) enco­men­da­mos muito que tratem desta devoção das Con­fra­rias; e de servirem, e venerarem nellas aos Santos, prin­ci­pal­mente á do San­tís­simo, e do nome de Jesus, á de N. Senhora, e das Almas do Pur­ga­tó­rio, porque estas Con­fra­rias he bem as haja em todas as Igrejas.”

No Brasil, como em Portugal, as bacias das almas estavam asso­ci­a­das à devoção a São Miguel, arcanjo tido como protetor das almas do pur­ga­tó­rio. Esta é ainda Adalgisa Arantes Campos, falando sobre a veneração às almas na Minas Gerais do século XVIII:

A evan­ge­li­za­ção ocorre às custas dos próprios leigos que, assentando-se soci­al­mente, erigem as irman­da­des, res­pon­sá­veis pelo culto e pela edi­fi­ca­ção dos templos mineiros. [...] Naquela rude sociedade teve grande pujança a soci­a­bi­li­dade con­fra­rial, voltada para as obras de mise­ri­cór­dia entre os próprios irmãos. Trata-se da caridade entre os pares. Apenas as irman­da­des de São Miguel e Almas reser­va­vam parte das esmolas recebidas – as bacias das almas – para a cele­bra­ção de missas para as almas do Purgatório.

A prática e a irmandade encon­tra­ram modo de perpetuar-se pelos séculos. EmEsaú e Jacó, escrito em 1904 mas falando de um Brasil de alguns anos antes, Machado de Assis apresenta um “irmão das almas”, figura que percorre o Rio de Janeiro com uma bacia de ofertas, trajando uma opa (túnica usada por membros das irman­da­des reli­gi­o­sas) e pedindo esmolas em favor dos mortos:

Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua da Mise­ri­cór­dia para a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Nati­vi­dade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: “Para a missa das almas!” tirou da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório.

De “bacia das almas” a “na bacia das almas”

A parte mais inte­res­sante dessa história é também aquela que seria mais impru­dente tentar retraçar: como a prática de caridade tornou-se expressão popular – mas o próprio cenário sugere asso­ci­a­ções a que é difícil resistir.

O aspecto mais tocante, a respeito da condição das almas do pur­ga­tó­rio, cons­tan­te­mente explorado na lite­ra­tura religiosa a respeito do assunto, era a sua falta de autonomia. Tratava-se de gente boa que estava sofrendo sem poder fazer coisa alguma para melhorar a sua condição, e essa falta de agência des­per­tava a pena que era o gatilho das doações.

Ninguém ignorava, porém, que as almas sofriam no pur­ga­tó­rio porque haviam deixado de usar sua autonomia quando estavam entre os vivos. Se em vida tivessem oferecido orações, ofertas e outras santas abs­ten­ções, poderiam ter evitado o pur­ga­tó­rio por completo ou reduzido con­si­de­ra­vel­mente a sua pena.

Esse era na verdade um grande incentivo psi­co­ló­gico em favor da doação de fundos para a causa da bacia das almas: os que doavam estavam usando a sua agência, e cada oferta era creditada como mérito em favor do doador. Cada doação repre­sen­tava menos culpas a serem expiadas numa eventual passagem futura pelo pur­ga­tó­rio, ou uma chance a mais de evitá-la. Deitar ofertas fre­quen­tes na bacia das almas era também evitar ter de um dia lançar mão desse der­ra­deiro auxílio.

A bacia das almas era o recurso dos que não tinham outro recurso, mas pre­ci­sa­mente porque tinham deixado passar opor­tu­ni­da­des melhores. A mesma lógica se aplica a alguém que vende uma pro­pri­e­dade ou a um time que se clas­si­fica “na bacia das almas”: trata-se de recorrer a uma solução dramática e longe do ideal, ao último recurso, porque as opor­tu­ni­da­des ótimas ficaram para trás.





ADENDO NA BACIA DAS ALMAS: A história das invenções

Uma história de origem não precisa ser factual para ser inte­res­sante, e ninguém sabe disso mais do que a internet. Quem precisa ter acesso às fontes quando a ima­gi­na­ção está sempre à mão?

Seguem uma ou outra história inte­res­san­te que a internet conta sobre a origem da expressão. O que importa que não sejam factuais, quando estamos falando de alguma coisa “na bacia das almas”?

 Baccinumanimæ

Do latim baccinumanimæ. As almas, sendo ima­te­ri­ais, incor­pó­reas e incolores, não ocupam lugar. Elas nunca estão, elas são. Já o baccinumera, naqueles tempos em que o latim era obri­ga­tó­rio porque os bárbaros ainda não haviam inventado o inglês, um lugar no qual eram depo­si­ta­dos os objetos/as coisas a serem guardados. Havia um baccinum para cada fina­li­dade, obe­de­cendo a formas, tamanhos e, sempre que possível, cores dife­ren­tes, a fim de que um baccinum destinado ao coccinare não viesse a ser usado, antes, como urinol. E vice-versa (con­ve­nha­mos, mais versa que vice).
Ora, dizer “leve esse objeto à bacia das almas”, como é fácil perceber, sig­ni­fi­cava “vá pentear macacos” ou “vá ver se eu estou na esquina”.
Essa expli­ca­ção (que encontrei aqui) esteve por anos arquivada neste sáite, não porque acre­di­tás­se­mos nela, mas pela sua male­mo­lên­cia muito satis­fa­tó­ria, sua vontade de convencer e de zombar ao mesmo tempo.

Na verdade, e se viesse ao caso, em latim “bacia” se diria “bassinum”, não “baccinum”.

Curi­o­sa­mente, outro modo de se dizer “bacia das almas” em latim é pelvim animæ3 . A expressão foi realmente usada por autores cristãos que escreviam em latim – não no sentido atual ou para referir-se às almas do pur­ga­tó­rio, mas como evocação poética. Exemplo: “derramar a água das Escri­tu­ras na bacia da alma/mittuntaquam de Scrip­tu­ris in pelvim animae4 ou “água colocada na bacia das nossas almas/aquaquammittamos in pelvim anima nostra5. Outras ocor­rên­cias aqui.

Ainda mais curioso é que parece ter sido nesse sentido poético que Luiz Antonio de Assis Brasil usou a expressão que dá nome a seu romance Bacia das Almas(1981):

– A noite do Sabá, anão, é aquela de que todos devemos par­ti­ci­par, uma vez na vida; é a noite em que nos aper­ce­be­mos de que existimos e nos tornamos conhe­ce­do­res da verdade. É a noite da confissão, des­man­cha­mento, queda do paraíso. Horrível noite, da qual acordamos novos, res­sus­ci­ta­dos e limpos, lavados na bacia das almas.

A bacia da Extrema Unção

A expressão provém dos pre­pa­ra­ti­vos para o sacra­mento da Extrema Unção, quando a bacia em que se colocavam os óleos, unguentos e para­men­tos do sacerdote ficavam ao lado do moribundo.

Essa história de origem comparece também ela no Dici­o­ná­rio Informal. Não tem qualquer fun­da­mento, mas é repetida em outros lugares da net sem muita reflexão (por exemplo aqui e aqui), como é o costume.

E você, caro e impe­ni­tente leitor, tem na memória ou na ima­gi­na­ção outra história de origem ou de uso para a expressão “na bacia das almas”? O mundo tem de saber, enquanto há oportunidade.


Fonte: Bacia das almas


NOTAS
1.     Gal­lar­gues Le Montueux, L’Eglise Saint Martin. []
2.     Revue de Gascogne, Volume 11. []
3.     Pélvis e bacia são sinônimos também no corpo humano, veja a coerência da coisa toda. []
4.     São Jerônimo. []
5.     Santo Ambrósio. []



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...