quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Onde guardar a memória


DESTAQUE


“Como então”, pergunta Agostinho, ”podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?”

Seguindo o raciocínio agostiniano, quando a memória tenta relatar acontecimentos passados, ela conta apenas com as palavras que exprimem os fatos, e não os fatos em si, já que deixaram de existir. Só nos restam pegadas do passado cujo destino é se apagar com o tempo.

Isso quer dizer que os arquivos e bancos de dados com memórias cada vez mais poderosas são apenas uma fantasia de eternidade? Arquivos prefiguram o paraíso? Talvez Agostinho pensasse assim, uma vez que, segundo ele, o tempo se dá na condição de presente que dura pouco, até se esvair no esquema divino da perpetuidade.



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Por LUÍS ANTÔNIO GIRON


Física, digital ou orgânica, a memória serve tanto para a conservação do passado como para reinventá-lo


















Os bancos de memória digital gigantescos que se espalham hoje não passam da materialização das lembranças, objetos e documentos de bilhões de pessoas que já passaram pelo mundo. É como se o tempo pudesse ser congelado a partir da informação recolhida sobre determinada época ou período da história. Terceirizamos a memória. Mas será que o tempo pode ser simplesmente conservado dessa forma? Ou melhor, existe uma forma de prender o tempo da forma exata como ele aconteceu?

Não literalmente. A memória orgânica do homem procura se transformar e se fixar em evidências materiais e em registros digitalizados, até porque ela se esvai cedo ou tarde. Por ser mortal e falível, a memória ambiciona ser mantida intacta no cofre impossível da eternidade. Guardar informação em local seguro é parte da condição dos indivíduos em constante luta para vencer o tempo. A precariedade da mente e a vida efêmera encontram um refúgio ilusório nos bancos de dados. Mas o tempo não cabe na memória, nas memórias de cada um dos indivíduos que vivem ou já viveram.

Sobre o assunto disse Santo Agostinho em suas Confissões (publicadas em 398 d.C.): a condição do tempo é a sua tendência para não existir. Ao pensarmos nele, temos a impressão de que sabemos o que ele é. Mas quando nos perguntam que ele significa, não conseguimos responder: os acontecimentos caminham rumo ao futuro, embora mal se tenham tornado passado. “Como então”, pergunta Agostinho, ”podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?” 

Seguindo o raciocínio agostiniano, quando a memória tenta relatar acontecimentos passados, ela conta apenas com as palavras que exprimem os fatos, e não os fatos em si, já que deixaram de existir. Só nos restam pegadas do passado cujo destino é se apagar com o tempo.

Isso quer dizer que os arquivos e bancos de dados com memórias cada vez mais poderosas são apenas uma fantasia de eternidade? Arquivos prefiguram o paraíso? Talvez Agostinho pensasse assim, uma vez que, segundo ele, o tempo se dá na condição de presente que dura pouco, até se esvair no esquema divino da perpetuidade. Imagino que ele julgaria a internet, a nova biblioteca universal, como um demoníaco depósito de lixo informacional. Não é o “palácio da memória” que ele menciona nas Confissões, que impregna a mente do homem com reminiscências do motor divino primordial, do qual ele próprio não é consciente.

Muita gente pensa ainda hoje como Agostinho. É o caso de Umberto Eco. Quando visitei o semioticista italiano em seu apartamento em Milão, em dezembro de 2011, Eco me disse que o excesso de informação e de memória virtual iriam conduzir a humanidade à amnésia. “O problema é que a falta de critério de seleção gera um ambiente caótico, em que todas as informações se equivalem”, disse. “Nesse ambiente, a terceira mulher de Júlio César, a medíocre Calpúrnia, torna-se tão importante como um gênio militar como César. Vivemos os tempos do caos armazenado”.

O caos do excesso poderia levar a humanidade ao Armagedom da cultura, da arte e do saber, como quer Eco? O sociólogo catalão Manuel Castells diz que irá ocorrer o contrário – e eu tendo a concordar com ele. Em conversa recente que tivemos em um hotel no bairro de Higienópolis em São Paulo, ele disse: “Quanto mais informação guardada, maior a qualidade da aquisição de conhecimento. Uma biblioteca de 400 mil títulos é melhor do que uma de 10 mil títulos. Na internet acontece a mesma coisa: a oferta de informação só faz crescer o conhecimento do usuário. O importante é você saber o que quer. E isso os jovens que já nasceram com a internet sabem mais o que ninguém, pois eles não precisam lembrar-se dos fatos, mas identificar onde eles estão [SIC! SIC! SIC!]. Experimentamos uma era inédita de informação e conhecimento universal e acessível”.


Desse modo, o tempo e seus fragmentos poderiam ser de alguma forma aprisionados, codificados e organizados para que humanidade aprenda com eles – e reinvente o passado via ficção e fantasia. Assim como os arquivos acumulam dados, os monumentos e os museus são erguidos e as efemérides festejadAs em memória a fatos que já não estão mais aqui. São as nuvens da memória profana que Agostinho jamais cogitaria. Nelas, os homens acumulam informações para tentar triunfar sobre a morte. Não importa que percamos nossa memória orgânica, porque todos iremos perdê-la. Arquivos, museus, monumentos, bancos de dados, servidores virtuais em nuvem, tudo isso forma os cemitérios dinâmicos de almas vivas, conservadas enquanto durar a cultura.

Fonte: Época

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