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“Como então”, pergunta Agostinho,
”podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não
existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre
presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade.
Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos
afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?”
Seguindo o raciocínio
agostiniano, quando a memória tenta relatar acontecimentos passados, ela conta
apenas com as palavras que exprimem os fatos, e não os fatos em si, já que
deixaram de existir. Só nos restam pegadas do passado cujo destino é se apagar
com o tempo.
Isso quer dizer que os arquivos e
bancos de dados com memórias cada vez mais poderosas são apenas uma fantasia de
eternidade? Arquivos prefiguram o paraíso? Talvez Agostinho pensasse assim, uma
vez que, segundo ele, o tempo se dá na condição de presente que dura pouco, até
se esvair no esquema divino da perpetuidade.
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Por LUÍS ANTÔNIO GIRON
Física, digital ou orgânica, a memória serve tanto para a conservação do passado como para reinventá-lo
Os bancos de memória digital
gigantescos que se espalham hoje não passam da materialização das lembranças,
objetos e documentos de bilhões de pessoas que já passaram pelo mundo. É como
se o tempo pudesse ser congelado a partir da informação recolhida sobre
determinada época ou período da história. Terceirizamos a memória. Mas será que
o tempo pode ser simplesmente conservado dessa forma? Ou melhor, existe uma
forma de prender o tempo da forma exata como ele aconteceu?
Não literalmente. A memória
orgânica do homem procura se transformar e se fixar em evidências materiais e
em registros digitalizados, até porque ela se esvai cedo ou tarde. Por ser
mortal e falível, a memória ambiciona ser mantida intacta no cofre impossível
da eternidade. Guardar informação em local seguro é parte da condição dos indivíduos
em constante luta para vencer o tempo. A precariedade da mente e a vida efêmera
encontram um refúgio ilusório nos bancos de dados. Mas o tempo não cabe na
memória, nas memórias de cada um dos indivíduos que vivem ou já viveram.
Sobre o assunto disse Santo
Agostinho em suas Confissões (publicadas em 398 d.C.): a
condição do tempo é a sua tendência para não existir. Ao pensarmos nele, temos
a impressão de que sabemos o que ele é. Mas quando nos perguntam que ele
significa, não conseguimos responder: os acontecimentos caminham rumo ao
futuro, embora mal se tenham tornado passado. “Como então”, pergunta Agostinho,
”podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não
existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre
presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade.
Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos
afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?”
Seguindo o raciocínio
agostiniano, quando a memória tenta relatar acontecimentos passados, ela conta
apenas com as palavras que exprimem os fatos, e não os fatos em si, já que
deixaram de existir. Só nos restam pegadas do passado cujo destino é se apagar
com o tempo.
Isso quer dizer que os arquivos
e bancos de dados com memórias cada vez mais poderosas são apenas uma fantasia
de eternidade? Arquivos prefiguram o paraíso? Talvez Agostinho pensasse assim,
uma vez que, segundo ele, o tempo se dá na condição de presente que dura pouco,
até se esvair no esquema divino da perpetuidade. Imagino que ele julgaria a
internet, a nova biblioteca universal, como um demoníaco depósito de lixo
informacional. Não é o “palácio da memória” que ele menciona nas Confissões,
que impregna a mente do homem com reminiscências do motor divino primordial, do
qual ele próprio não é consciente.
Muita gente pensa ainda hoje como Agostinho. É o caso de Umberto Eco.
Quando visitei o semioticista italiano em seu apartamento em Milão, em dezembro
de 2011, Eco me disse que o excesso de informação e de memória virtual iriam
conduzir a humanidade à amnésia. “O problema é que a falta de critério de
seleção gera um ambiente caótico, em que todas as informações se equivalem”,
disse. “Nesse ambiente, a terceira mulher de Júlio César, a medíocre Calpúrnia,
torna-se tão importante como um gênio militar como César. Vivemos os tempos do
caos armazenado”.
O caos do excesso poderia levar
a humanidade ao Armagedom da cultura, da arte e do saber, como quer Eco? O
sociólogo catalão Manuel Castells diz que irá ocorrer o contrário – e eu tendo
a concordar com ele. Em conversa recente que tivemos em um hotel no bairro de
Higienópolis em São Paulo, ele disse: “Quanto mais informação guardada, maior a
qualidade da aquisição de conhecimento. Uma biblioteca de 400 mil títulos é
melhor do que uma de 10 mil títulos. Na internet acontece a mesma coisa: a
oferta de informação só faz crescer o conhecimento do usuário. O importante é
você saber o que quer. E isso os jovens que já nasceram com a internet sabem
mais o que ninguém, pois eles não precisam lembrar-se dos fatos, mas
identificar onde eles estão [SIC! SIC! SIC!]. Experimentamos uma era inédita de informação e conhecimento
universal e acessível”.
Desse modo, o tempo e seus
fragmentos poderiam ser de alguma forma aprisionados, codificados e organizados
para que humanidade aprenda com eles – e reinvente o passado via ficção e
fantasia. Assim como os arquivos acumulam dados, os monumentos e os museus são
erguidos e as efemérides festejadAs em memória a fatos que já não estão mais
aqui. São as nuvens da memória profana que Agostinho jamais cogitaria. Nelas,
os homens acumulam informações para tentar triunfar sobre a morte. Não importa
que percamos nossa memória orgânica, porque todos iremos perdê-la. Arquivos,
museus, monumentos, bancos de dados, servidores virtuais em nuvem, tudo isso
forma os cemitérios dinâmicos de almas vivas, conservadas enquanto durar a
cultura.
Fonte: Época
Fonte: Época
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