sexta-feira, 20 de junho de 2014

Sociedade Orgânica - Bem Comum e Lei Natural




Raphael de la Trinité

         Qualquer homem tem conhecimento, mais ou menos definido, da lei natural. Aqui entra a questão da consciência, em si mesma e em suas relações com o próximo.
         São Paulo proferiu um lugar-comum, quando falou da lei que se acha inscrita nos corações (Rom. 2,15). E até uma pessoa sem formação jurídica sabe perfeitamente que há uma diferença entre o que é justo e o que é formalmente legal, entre o que é justo e o que é ilegal. Esse apelo para a ideia de justiça, para a “lei” enquanto distinta da simples vontade do legislador, é testemunho irrefutável para a convicção da existência da lei natural.
        O homem, dotado de razão e livre-arbítrio é união do princípio que a constitui, a alma, e do princípio formado, a matéria, isto é, o corpo. Cabe à natureza do homem aperfeiçoar-se numa vida operante, cujo fim é uma vida que corresponda tão perfeitamente quanto possível à ideia do homem, a uma vida de acordo com a razão.
        Aristóteles afirma que esse fim não pode ser alcançado pelo homem solitário, pois só pode ser atingido por homens vivendo nessa comunidade, indicada por todas as qualidades essenciais e pela natureza mesma do homem. A vida social (isto é, viver em comunidade com seu semelhante) é necessidade, não em virtude de “carência”, mas da perfeição intencional da natureza do homem. Desse modo, a comunidade é forma intencional de vida para o indivíduo.
         “Comunidade” emprega-se aqui, não no sentido de modo de vida geral, vago sentimental indefinido, e sim, no sentido de formas sociais, definidas e concretas. Dessas formas, duas ao menos são fundamentais ou necessárias, servindo direta e indiretamente para a geração, a exaltação, a perfeição e a transmissão da vida, esta em seu sentido pleno: a vida intelectual, moral, cultural, e a vida “biológica”. Tais formas essenciais são a família (a comunidade de marido e mulher, de pais e filhos) e o Estado (a comunidade da vida política, de uma ordem de famílias e pessoas). O indivíduo, posto que único, ainda não está perfeito e não tem, no isolamento, oportunidade para uma vida perfeita, a realização da ideia de homem. A própria individualidade de cada um indica a participação em comunidades. O homem chega à existência como fruto da família, cuidado e protegido durante os verdes anos até que fique habilitado para cumprir o seu destino, realizar concretamente sua personalidade e tornar-se homem, atingir o estado de felicidade que cada um busca — isso, na medida em que as paixões e a ânsia das coisas desumanas, não lhe obscureçam a mente. Ora, o individuo não mergulha na comunidade qual órgão sem alma, inconsciente, mas conserva sua personalidade individual e torna-se membro de um conjunto, a fim de desenvolver mais completamente sua personalidade. Por isso, a vida em comunidade engradece, exalta e aperfeiçoa o individuo e sana as dificuldades e carências ligadas à mera individualidade e ao isolamento.
        Neste sentido, entra a distinção fundamental, estabelecida pelo Papa Pio XII, entre povo e massa (Radio-mensagem do Natal de 1944).
        Em síntese, povo é um conjunto de pessoas, ou seja, indivíduos com personalidade própria, inconfundível; quanto à massa, é um amálgama de compostos sem individualidade própria, razão pela qual podem ser plasmados, secundo o bel-prazer de um ditador ou manipulador de multidões.
        Santo Tomás de Aquino (Summa Theol., IIa IIae, q. 58, a; 7 ad 2) faz notar que o bem comum é essencialmente diferente do bem particular. Analogamente, a justiça comutativa da distributiva (abid., q. 60, a. 3).
        Santo Tomás refere-se à dilectio socialis, isto é, à caridade social, ou amor social. O magistério da Igreja entende a caridade como um vínculo de um cidadão para com os demais. A caridade é como que a alma de uma sociedade — a força que lhe dá coesão interna. De fato, a ausência da prática da caridade causa necessariamente um grave enfraquecimento ao próprio edifício social. (Cf. Santo Tomás de Aquino, De caritate, 9).
        Os grandes mestres sempre ensinaram, em uníssono, que o Estado brota da família, em cujo seio se desenvolve.
        Leão XIII exprime esse conceito de forma magistral: “Diversas famílias, não abandonando os direitos e deveres da sociedade doméstica, unem-se sob inspiração da natureza, para se constituir em membros de uma outra grande família, a sociedade cívica” (Acta Sanetae Sedis, XXIV [1891-92], 250).

Igualitarismo e massificação social

        A mentalidade igualitária e o intervencionismo estatal representam as duas principais correntes ideológicas que lutam contra os ideais de liberdade, princípios morais e ordem natural, não obstante encobrirem por vezes as suas intenções.
        As ordens hierárquicas entre os seres humanos exprimem as várias formas e aspectos da perfeição divina. Considerando que Deus é infinito, por mais perfeita que seja a criatura humana, nunca poderá alcançar sozinha a perfeição divina, que é ilimitada. Torna-se, em consequência, necessária a existência de um  número incalculável de seres diferenciados, de maneira que possam refletir a perfeição divina. (“Santo Tomás de Aquino, Summa Teológica¸ I, Q. 47, a. 2, e Summa Contra os Gentios, Livros. 2, cap. 45).
        Ignorar ou pôr de lado a imensa variedade de perfeições, capacidades e funções da natureza humana, em nome de um quimérico ideal de igualdade, constitui uma inversão de valores, um absurdo e uma afronta ao senso comum.
        São João Crisóstomo (344-407), Patriarca de Constantinopla e um dos quatro Doutores da Igreja do Oriente, explicou este assunto com uma lógica e vigor incomparáveis, ao afirmar: “Os inimigos da piedade utilizam as desigualdades que nos é dado observar entre ricos e pobres, com o intuito de formularem um raciocínio capcioso contra a Divina Providência. Contudo, se utilizássemos de forma adequada a nossa inteligência, perceberíamos logo que essa desigualdade é a mãe do trabalho e da produção (...). Como seria a sociedade se todos os homens fossem igualmente ricos? Ninguém trabalharia; ninguém teria uma ocupação braçal ou um trabalho árduo; os campos ficariam por cultivar, e a ociosidade reinaria nas nossas cidades; o comércio, a produção, e todas as artes cairiam em extinção. E as pessoas ainda acusam a Divina Providência de não ter feito todos os homens igualmente ricos?”.
       
Princípios de uma Sociedade Orgânica

        Primeiro princípio: A existência de potencialidades como algo inerente a cada homem.
        A base da concepção orgânica da sociedade reside no princípio de que, em linhas gerais, os homens possuem personalidades muito ricas e variadas. A sociedade deve encorajar cada um  a atualizar suas potencialidades, fornecendo-lhe meios abundantes para tal.

        Segundo princípio: A existência de leis naturais
        Como já referido acima, as leis naturais decorrem da própria natureza humana, dai serem normas imperativas.
        “Orgânico” deriva de organismo, ou seja, estrutura viva, ordenada pela própria natureza, cujas leis são fundamentalmente imutáveis.

        Terceiro princípio: Uma sociedade se constrói de baixo para cima.
        A sociedade medieval, por exemplo, organizou-se de modo orgânico. Não foi um rei que decretou: “De hoje em diante, passa a existir o Reino da França, e começarei a governá-lo”. Precisamente foi o contrário que sucedeu. Tudo começou de baixo para cima: das famílias para as mesnadas (associação de clãs ou famílias com laços mais próximos); destas para as vilas; daí para o os feudos; e, dos grandes feudos, para o Reino. Organização foi piramidal.
        Em tais condições tudo se processou de um modo verdadeiramente conforme as necessidades locais. Não foram elucubrações de um “filósofo de gabinete” que construíram os reinos do Velho Continente, quer se trate da França ou Espanha, quer se trate do Sacro Império Romano-Germânico ou de qualquer outra nação do concerto europeu.
        Quarto Princípio: Subsidiariedade
        A formação das sociedades maiores não elimina as que são menores, pois aquelas só devem fazer aquilo que estas não são capazes de fazer por si só. Com efeito, a união dos pequenos feudos num maior não destruía os pequenos, nem a reunião dos grandes feudos suprimia os menores.
        Algo disso se verifica nas associações futebolísticas, Assim, a existência da federação de clubes não prejudica a dos clubes, com base no princípio de que a federação não se imiscui nos assuntos internos de cada clube. É uma vantagem para estes. O processo é semelhante ao que vemos na organização política medieval. A formação das sociedades mais altas constituía um enriquecimento para as inferiores.

        Quinto Princípio: Espírito associativo intenso
        Como resultado desse espírito associativo, a sociedade medieval compreendia um sem número de subdivisões em agrupamentos dos mais variados tipos e dimensões.
        Lubeck,  por exemplo, cidade no norte da Alemanha, que deveria ter no século retrasado de 50 a 60 mil habitantes, possuía nessa mesma época duas mil organizações culturais, artísticas, esportivas e religiosas. Na Idade Média tal número era consideravelmente maior.

        Sexto Princípio: Vida própria e entrelaçamento das sociedades
        Ainda hoje, nas regiões antigas que conservam vivas muitas tradições medievais, nota-se o grande amor cultivado por todos em relação à sua terra natal e respectivos costumes. Quem é ejetado, extirpado desse meio, sente-se, mais do que qualquer outro, como “peixe fora d’água”, ficando a alma cheia de recordações, e com natural dificuldade para se adaptar a outras paragens. Explica-se. Em sua terra todos são tendentes a se achar membros de uma grande e verdadeira família.
        Em certo sentido notamos aqui o oposto de uma globalização massiva e desproporcional, como a que se dissemina nos dias atuais.
        Reportando-nos, mais uma vez, à Idade Média, cumpre lembrar que as classes sociais se compunham, nessa época, de três grandes grupos: clero, nobreza e povo. No interior de cada um de cada um desses agrupamentos, por sua vez, uma enorme gama de variedades e subdivisões.

        Sétimo Princípio: Caráter típico dos agrupamentos sociais
        Em nossos dias, todas as sadias particularidades locais vã fenecendo.
        No contexto medieval, pelo contrário, as sociedades procuravam manifestar-se de um modo muito visível e abundante. Proliferavam trajes característicos, músicas e emblemas próprios. Não poucas vezes, modos peculiares de se exprimir, dialetos e expressões locais naturalmente vicejavam.
         Entre os mais diversos cenários da vida, corporações de artesãos, associações de burgueses, categorias nobiliárquicas, em belas sedes, festejavam seus feriados, e davam curso a cerimônias extremamente originais. Numa sadia emulação (algo que, quando bem compreendido, só pode ser fator de ânimo e incentivo para a virtude), cada entidade procurava sobrepujar as outros, mediante a exaltação de inconfundíveis valores, prenhes de vida própria e realizações dignificantes, tudo em meio a feitos gloriosos e heroicos.
       
Oitavo Princípio: Desigualdade e pujança
        Por sua natureza, as coisas mais pujantes têm mais títulos para se distinguir entre si do que as de menor expressão ou significado. Em termos filosóficos, pode-se afirmar: quanto maior a perfeição, maior a desigualdade. Assim, por exemplo, a manifestação de talento é mais facilmente discernível entre dois escritores do que entre dois engraxates. Por quê? A razão está em que a arte de redigir é intrinsecamente superior à arte de lustrar calçados.

Nono Princípio: O amor pelo privilégio
        Certos juristas de nossos dias de tal forma se deixaram obcecar pela ideia de que só haveria verdadeira justiça na norma abstrata, impessoal, universal e igual para todos, que chegam a pleitear um sistema jurídico mundial e único, com as mesmas leis para todos os povos. Isso aberra do bom senso e necessariamente conduz a uma república universal.
        Na Idade Média, pelo contrário, um dos marcos da independência de todas as associações existentes — tomemos como exemplo o caso das corporações de ofício – consistia no fato de serem essas pequenas sociedades regidas por leis próprias. Desse modo, sentiam-se protegidas de possíveis ingerências monopolizadoras e intromissões totalitárias por parte das sociedades superiores, assim como das arbitrariedades de possíveis tiranos.
          Nesse sentido, o célebre historiador francês Franz Funk-Brentano faz notar que, na Idade Média, até mesmo famílias, em certos casos, possuíam leis próprias, e o rei as respeitava. Quando, por exemplo, o soberano queria infligir um castigo a um membro dessa família, ordenava ao chefe da mesma que a fizesse.
        Na Idade Média isso era habitual; cada cidade, cada corporação — até famílias, por vezes, como vimos —, gozavam do direito de uma legislação própria, adaptada às suas necessidades e conveniências específicas. Ao contrário de nossos dias, as pessoas não se perdiam no anonimato e, quando prevaricavam, costumavam ser julgadas por elementos de seu agrupamento social.

        Objeções: O privilégio não poderia gerar abusos?
        Ao contrário do que comumente se imagina, a tendência dos agrupamentos menores era de castigar com muito rigor, por isso frequentemente, como no caso das universidades, a autoridade intervia para atenuar a pena.
        Quando estudamos a vida dos reis medievais, vemos que uma das principais ocupações de que se incumbiam, era a de julgar. São Luiz IX, Rei da França, costumava receber o povo todos os dias, debaixo de um carvalho em Vincennes, e, em contato direto com as famílias e as corporações, distribuía a justiça.
        Também a instituição jurídica da apelação foi amplamente conhecida na Idade Média.

        Os privilégios dos cavaleiros
        Sempre longe de sua família, o cavaleiro passava os dias combatendo, ao passo que o cidadão comum levava uma vida sem maiores riscos ou sobressaltos. Havia, portanto, uma lei especial para quando agisse bem e uma lei especial para quando agisse mal.

        Décimo princípio: Opinião pública, autêntica e participação popular verdadeira – diferença entre ‘opinião pública e opinião publicada’
        Hoje em dia pelo fato de votar nas eleições, o homem comum julga estar participando do governo. Na realidade, porém, o voto de um operário tem um mesmo valor que o voto de um general, de um professor, de um embaixador. O resultado acaba sendo, que os maiores demagogos no geral vencem. É isso uma participação efetiva no governo? Na Idade Média cada homem se pronunciava nos problemas que entendia, ou seja, pertinentes ao  seu feudo, à sua cidade, corporação de ofício, universidade...
        Em todos os níveis da escala social, esse contato necessariamente fazia com que os súditos influíssem na ação de governo dos seus senhores.
        O modo concreto pelo qual o povo influía nos negócios públicos variava enormemente de região para região, de instituição para instituição. Contudo, o traço dominante de todos os lugares era sempre este: o povo atuante, por vias costumeiras, na direção da coisa pública.

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